Com o ressurgimento do debate sobre o auxílio-moradia, apelido dado ao benefício mensal de 4 377 reais pago a milhares de juízes brasileiros, deflagrou-se uma discussão infértil. Questiona-se se o magistrado tem imóvel próprio, se o benefício está claramente definido em lei, se o salário dos juízes é baixo demais — mas nada disso acerta o alvo. A questão central é: por que um magistrado — e, para esse efeito, qualquer servidor público — deve ter um auxílio para pagar o imóvel em que vive?
Há circunstâncias profissionais, tanto no exercício de uma atividade pública quanto na iniciativa privada, em que o trabalhador pode ter direito a um auxílio financeiro para bancar sua habitação. O caso clássico é a transferência compulsória de cidade para trabalhar. Afora circunstâncias assim especiais e muito específicas, não há nenhuma razão moral para que um servidor público tenha direito a auxílio-moradia pago com dinheiro do contribuinte.
No entanto, o tal privilégio de 4 377 reais disseminou-se pelos poderes, sobretudo pelo Judiciário, como mostra a reportagem desta edição. É cristalinamente óbvio que se trata de uma burla, uma manobra, um jeitinho para aumentar os salários dos magistrados sem dizer que é aumento salarial. É um disfarce intolerável tão evidente que chega a ser chocante que poucos juízes tenham tido a honestidade intelectual de reconhecer publicamente que é tudo uma burla — e que é preciso ejetar essa excrescência da vida nacional.
Na raiz da existência da farra do auxílio-moradia está a velha e dolorosa chaga nacional: o nível obsceno de desigualdade socioeconômica do Brasil, cevado em décadas e décadas de descaso insultuoso com os mais humildes. Só a cultura da desigualdade pode fazer parecer compreensível que, num país em que quase metade da população não tem onde morar ou mora precariamente, uma casta de altos funcionários públicos, com um salário razoável, possa ter direito a um tal privilégio. É o Minha Casa, Minha Vida para os mais necessitados, e o Minha Casa, Meu Auxílio para o que Raymundo Faoro, em sua obra seminal Os Donos do Poder, chamou de “estamento”, aquela elite nacional que captura o Estado para capturar as rendas públicas.
É inaceitável.
Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2018, edição nº 2569