Apolo embriagado
No sedutor 'Me Chame pelo Seu Nome', de Luca Guadagnino, o sol da Itália incendeia a primeira paixão de um rapaz por um visitante americano mais velho
Da janela, Elio (Timothée Chalamet) assiste ao americano muito alto desdobrar-se para fora do carrinho, e é como testemunhar o instante exato em que uma ideia vaga adquire contornos concretos — e avassaladores. Oliver (Armie Hammer) é o “usurpador”, como brincou Elio momentos antes: um dos pesquisadores assistentes a quem, todo verão, seus pais hospedam na vila da família, no norte da Itália, obrigando Elio a ceder seu quarto espaçoso. Mas Oliver, o visitante de 1983, é uma criatura à parte. É pouca coisa mais velho que Elio — 24 anos, contra os 17 do rapaz. E é um Apolo, tão belo que por um momento rouba o fôlego de quem o olha, e tão pleno que parece ocupar todo o espaço. Apresenta-se com desenvoltura aos seus anfitriões, Annella e o senhor Perlman (Amira Casar e o maravilhoso Michael Stuhlbarg), sobe as escadas com estrondo, joga-se na cama que era de Elio, cai no sono ainda calçado e não acorda nem para o jantar. A irritação de Elio é imediata, inexplicável. E se acentua quando, na manhã seguinte, Oliver aceita seu convite para sair de bicicleta, e então o larga no meio da praça da cidade com um casual “até mais”. Elio é um músico talentoso, um leitor voraz, um conversador inteligente e instigante; como o ofende ser descartado assim — e como Oliver atiça sua curiosidade com tanta displicência e independência. Me Chame pelo Seu Nome (Call Me by Your Name, Itália/Brasil/França/Estados Unidos, 2017), que estreia no país nesta quinta-feira, mergulha nas vagarias dessa corrente elétrica entre seus dois protagonistas (ambos fabulosos), e é em tudo tão embriagante quanto os sentimentos que vão tomando conta deles. Oliver e Elio se apaixonam não só um pelo outro, como também pelo sol e pela languidez do verão italiano — e pela própria paixão.
Produzido pelo brasileiro Rodrigo Teixeira — de A Bruxa, Frances Ha, Melhores Amigos e com uma carteira internacional cada vez mais extensa e expressiva — e dirigido pelo italiano Luca Guadagnino com locações magníficas nas cidadezinhas medievais da região da Lombardia, Me Chame pelo Seu Nome tornou-se um favorito dos festivais desde que foi exibido em Sundance, há um ano, e agora frequenta com a mesma assiduidade as premiações desta temporada. Ganhou o troféu do American Film Institute de filme do ano, concorreu ao Globo de Ouro, tem quatro indicações ao Bafta, o Oscar britânico, e punhados delas em outras listas de críticos e associações. Não está de fora de nenhuma premiação de qualquer importância já divulgada, e sua presença é dada como certa em várias categorias do Oscar, cujas indicações serão conhecidas no dia 23. Enfrentaria rivais fortíssimos no grupo de melhor filme — a exemplo de Três Anúncios para um Crime, que tem ganhado muita tração nas últimas semanas. Mas não está, de maneira nenhuma, fora do páreo. Na hipótese de vencer, essa seria a primeira vez em que um brasileiro sobe ao palco para pegar a estatueta do prêmio principal (que é entregue sempre aos produtores).
É quase impossível chegar ao Oscar, hoje, sem ampla representação em festivais e premiações, de um lado, e recepção calorosa da plateia, de outro. Esta, disse Teixeira a VEJA, ele tem verificado por onde viaja com o filme, apesar do tema potencialmente delicado da paixão entre um adolescente e um adulto. “Fomos beneficiados pelo clima positivo que se formou em torno de Moonlight”, afirma, em referência ao ganhador do Oscar de 2017. Mais do que qualquer circunstância, porém, é o filme mesmo que conspira em seu próprio favor.
Adaptado do romance homônimo do ítalo-americano André Aciman (lançado no Brasil pela Intrínseca), com roteiro do veterano James Ivory, Me Chame pelo Seu Nome renova uma premissa perene, a da Itália como o lugar em que as estrituras anglo-saxônicas cedem em meio ao dolce far niente e à liberdade e multiculturalismo milenar da península, propiciando intensas descobertas pessoais — que podem ir do muito sombrio, como em O Talentoso Ripley (1999), ao muito romântico, como em Uma Janela para o Amor (1985, com direção de Ivory), ou ao complicado e pungente, como em Um Sonho de Amor e Um Mergulho no Passado, os trabalhos anteriores de Guadagnino. Que aqui, entretanto, afinal consegue levar ao ponto de ebulição essa reação singular entre cenário e personagens, e tirar dela um sumo inebriante.
Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2018, edição nº 2565