A paixão é uma loucura
Clínico mas compassivo, 'Uma Escala em Paris' trata de uma mulher que corta os laços com a realidade ao tomar uma noite de sexo casual por um grande amor
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De passo em passo, Gina (Lindsay Burdge) desliza para a insanidade. Comissária de bordo solitária e que, conforme diz a narração de Anjelica Huston, se sente invisível aos olhos de todos, ela acaba de perder de maneira medonha o único homem que a amou. Suas colegas de voo pressentem que algum alento é urgente e, numa parada em Paris, subornam uma vidente para dar a ela uma leitura de tarô que anuncie um recomeço. Subestimaram, porém, a fragilidade de Gina, que toma tudo ao pé da letra e, saindo dali, já cuida de se apaixonar por um barman meio grosseiro e casualmente indiferente com quem faz sexo naquela noite. Nem ocorre a Jérôme (Damien Bonnard) que Gina queira vê-lo de novo. Mas ela volta, e retorna e insiste, e larga o emprego, muda-se para Paris e controla todos os movimentos de Jérôme — que afinal se dá conta de que está sendo perseguido, e de que não há como se desvencilhar de sua perseguidora.
A obsessão de uma mulher por um homem que não a deseja e apenas se valeu dela momentaneamente é um tabu para o pós-feminismo, por supor uma fraqueza e uma dependência vexaminosas. No cinema, em geral ganha o tratamento titilante de um Atração Fatal (aquele em que Glenn Close se vingava de Michael Douglas cozinhando um coelhinho). O diretor e corroteirista Nathan Silver, porém, recusa-se a adentrar o território do thriller. Seu olhar clínico não diminui sua compaixão — nem para com a protagonista de Uma Escala em Paris (Thirst Street, França/Estados Unidos, 2017; já em cartaz no país), nem para com Jérôme. A realidade de uma vida a dois — qualquer realidade, talvez — esteve sempre tão fora da experiência de Gina que, confrontada com um horizonte em que a solidão é a perder de vista, ela opta por cegar-se e criar a realidade que lhe convém. Na tentativa de não enlouquecer, enfim, Gina mergulha de vez na loucura. É aflitivo observar sua deterioração — e também a destruição que ela conjura à sua volta, sempre serenamente alheia a tudo.
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2018, edição nº 2584