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A multidão impune

Qualquer pesquisa mostraria que 100% dos brasileiros são contra o foro privilegiado. Mas será que há mesmo neste país tanta gente contra a impunidade?

Por J.R. Guzzo Atualizado em 8 dez 2017, 06h00 - Publicado em 8 dez 2017, 06h00

Quantas pessoas são contra o “foro privilegiado” ou a “imunidade parlamentar”, essas regras que permitem aos políticos brasileiros ser julgados apenas por eles mesmos quando cometem crimes e, portanto, garantem que não vai haver punição nenhuma para ninguém? Ou que dão a certos indivíduos o direito de ser julgados apenas nas instâncias superiores da Justiça? Qualquer pesquisa do Ibope ou do Instituto Santa Izildinha de Opinião Pública vai dar que 100% são contra, podendo, com a margem de erro, chegar a 102%. Mas será que há mesmo neste país tanta gente contra a impunidade? A resposta é: não, não há. Ao contrário, há uma quantidade surpreendente de cidadãos que são a favor — e é justamente por isso que o foro privilegiado e as imunidades continuam a existir. É verdade que há alguns ruídos sobre o assunto no Supremo Tribunal Federal, com educadas sugestões para “restringir” um tanto esses privilégios — na tentativa de que pelo menos algum crime de peixe graúdo, um só que seja, possa enfim acabar punido. Digamos: se o senador matou a mãe a machadadas, e não conseguiu provar que ela estava infernizando o exercício do seu cargo, talvez ele possa ter problemas com a Justiça. Não seria, nesse caso, julgado “por seus pares”, e sim numa vara da Justiça criminal. Mas nem isso está indo adiante. O julgamento começou, parou e não tem data para recomeçar.

O exército que luta pela continuação dos foros privilegiados é vasto e bem armado. Para começar, vai muito além dos deputados federais e senadores — esses aí levam quase toda a culpa pela existência do sistema, pois ficam com a imagem de ser os únicos que tiram vantagem dele. Mas não é assim. Na verdade, é o contrário: há 513 deputados e 81 senadores, num total de 594 beneficiários, e isso é um pingo d’água no total de brasileiros protegidos atualmente pelos diversos tipos de impunidade em vigor para quem tem carteirinha de “autoridade”. Pode ser difícil de acreditar, mas o fato é que o contribuinte paga, no presente momento, os salários, benefícios e futuras aposentadorias de nada menos que 55 000 indivíduos que têm o direito de não responder à Justiça pelo que fazem, de uma batida de carro ao estupro qualificado — não da mesma forma que respondem os demais 200 milhões de habitantes deste país. Desfrutam dos privilégios, numa conta geral, todos os juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores — incluindo-se aí os “tribunais de contas”. Só de juiz, nesse bolo, são mais de 17 000.

Somam-se a eles os procuradores, subprocuradores, promotores e tudo o mais que faz parte da armada de Ministérios Públicos que há por aí. Estes são um monte, acrescidos de “núcleos” — para o Trabalho, o Meio Ambiente, a Cidadania, a Mulher, o Índio, o Gênero, e por aí vai, até onde alcança a capacidade do serviço público em multiplicar a própria espécie. Entram também os 27 governadores, os prefeitos e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Têm foro especial, ainda, todos os ministros de Estado, e aí a proteção vale realmente para qualquer um — vale, por exemplo, para essa ministra que se acha escrava por ganhar só 33 000 reais por mês. Somam-se mais umas turminhas de burocratas aqui e ali, e pronto — eis aí os tais 55 000. Em que país bem-arrumado deste mundo existe alguma coisa parecida? Por que o resto da humanidade estaria errada e brasileiros estariam certos? (Juízes e procuradores, aliás, ficam horrorizados com o foro privilegiado e as imunidades dos políticos, mas acham a coisa mais normal do mundo que o mesmo privilégio seja aplicado a eles próprios.)

É claro que toda essa multidão, mais suas famílias, amigos e amigos dos amigos, é furiosamente a favor da manutenção das “imunidades”. Eles não abrem mão nesta vida, de jeito ne­nhum, de três coisas: os salários acima do teto legal, os “benefícios” que obrigam o cidadão brasileiro a lhes pagar, fora isso, a comida, a casa, o carro e sabe Deus o que mais, e o “foro especial”. Utilizam, em seu favor, um argumento antigo e que hoje se tornou apenas velho — o de que os privilégios legais servem para defender a sociedade inteira, e não apenas os seus beneficiários diretos. Os políticos, por exemplo, não poderiam exercer com liberdade o mandato para o qual foram eleitos se estivessem sujeitos o tempo todo a processos judiciais que certamente seriam abertos contra eles por seus adversários. Os magistrados e procuradores, da mesma maneira, não poderiam julgar nem denunciar os inimigos da sociedade de forma imparcial e independente se vivessem sob o risco de ficar atolados em processos judiciais movidos por governos, réus influentes e outras forças poderosas. Seria, em suma, a defesa da democracia, das liberdades e das instituições. Mas não é nada disso.

Nenhum político ou magistrado precisa de imunidades para exercer com liberdade, consciência e autonomia o seu mandato e as suas funções. Basta que eles sejam honestos; basta que não pratiquem crimes previstos no Código Penal brasileiro. As prerrogativas legais que protegem hoje o seu trabalho continuariam a existir, perfeitamente, se fosse suprimido o foro especial como ele funciona; ninguém sugeriu, nem de longe, que tais garantias fossem diminuídas. Se um cidadão honesto não precisa de nenhuma “imunidade” para viver e trabalhar em paz, por que raios um deputado, juiz ou promotor público haveria de precisar? Isso aqui, afinal, não é nenhuma ditadura em que os donos do governo podem cassar deputados ou demitir juízes de direito que lhes desagradam. O foro especial, na verdade, é inútil para proteger os honestos; serve unicamente para salvar o couro de quem quer roubar, vender sentenças e praticar outros crimes.

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Naturalmente, juntam-se aos interessados diretos na defesa das imunidades todos os partidos, lideranças e militantes partidários do Brasil. Estão nessa turma, é claro, todos os escroques das nossas gangues políticas. Mas o escândalo real, nesse assunto, é o apoio que a impunidade recebe do PSDB e do PT e seus satélites — os “partidos éticos”, vejam só, que se dizem diferentes do lixo geral e se apresentam ao público, num caso e no outro, como modelos de integridade ou campeões das causas populares. Alguma vez as imunidades prejudicaram um rico? Alguma vez beneficiaram um pobre? Mas aí é que está. O senador Aécio Neves, vice-rei do PSDB, foi flagrado numa tentativa de extorsão e hoje vive sob a proteção do foro privilegiado; no dia da votação sobre o seu destino, a presidente do PT, em vez de comparecer ao Senado, conseguiu estar na Rússia. Pior: do maior líder popular que este país já teve não se ouviu até agora um pio contra essa safadeza disfarçada de “garantia constitucional”.

O problema é que, quando há uma injustiça desse tamanho na frente de todo mundo, dessas que clamam aos céus, e você fica em silêncio, não há saída: você é cúmplice. Lula e o PT, tanto quanto seus grandes adversários, estão a favor do foro privilegiado na vida real. Sem o seu apoio, jamais se mudará nada disso. Mas por que eles iriam combater o que mais os ajuda?

Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2017, edição nº 2560

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