Causou certa celeuma nas redes sociais a iniciativa de um grupo de dezesseis juízes e promotores brasileiros de criar um movimento que defenda a igualdade de etnia e de gênero na sociedade, inclusive no Ministério Público e no Judiciário.
Embaladas pela intolerância desinformada que grassa no ambiente virtual, algumas pessoas tentaram inverter os papéis, atribuindo aos integrantes desse grupo, do qual faço parte, intenções discriminatórias. Trata-se, evidentemente, de sugestão descabida, mas que bem serviu para mais uma vez evidenciar o temor de alguns de perder privilégios.
Tive oportunidade de desfazer o mal-entendido nos mesmos canais. Expliquei que seria uma contradição se um movimento que defende a igualdade se pautasse por atitudes discricionárias. A luta pela igualdade, por natureza e definição, é de todos os que anseiam por uma sociedade mais justa. Estamos, pois, abertos a todos os membros da magistratura e do Ministério Público que comungam do mesmo ideal.
Não quero, no entanto, me estender sobre a reação nas redes sociais. Entendo que ruídos na comunicação são causados tanto por quem ouve quanto por quem fala, e assumo minha parcela de responsabilidade se a mensagem não foi devidamente entendida.
Mais importante é compreender as razões do movimento. No meu caso, elas não podem ser dissociadas de minha trajetória.
Nasci e cresci na periferia da Zona Sul de São Paulo, para onde meus pais migraram nos anos 50. Ele veio do interior da Bahia, de pau de arara, para trabalhar na construção civil. Ela chegou aos 16 anos, junto com a mãe, analfabeta, recém-registrada pela filha com data de nascimento aproximada.
Sou testemunha de casos que inflam as mais revoltantes estatísticas sociais do Brasil. Era ainda pré-adolescente quando uma de minhas amiguinhas foi morta na porta de sua casa. Tinha 11 anos. Saberia mais tarde que seu assassinato não era exceção, mas regra. O recente Atlas da Violência mostra que 23 000 jovens negros são assassinados por ano. Não, minha amiga não era negra, mas pertencia àquele grupo social que Caetano Veloso chamou de “quase brancos quase pretos de tão pobres”.
Anos depois meu pai morreu. Tinha 52 anos, a idade que tenho hoje. Não resistiu às complicações de uma infecção que originalmente seria de fácil tratamento. Mais uma morte prematura evitável. Hoje não é diferente. O Mapa da Desigualdade de 2017 mostra que um morador do Jardim Ângela, na periferia de São Paulo e de maioria negra, tem expectativa de vida de 55,7 anos, enquanto na elegante região dos Jardins, de maioria branca, a expectativa é de 79,4 anos.
Minha trajetória não tem importância para os outros pelo que tem de único. O que a torna relevante para o nosso movimento é o que ela tem em comum com a população negra e seus antepassados escravos.
Nos anos 80, às vésperas do centenário da Abolição, presenciei uma cena que jamais esqueci. Viajava de trem de Marília, no interior de São Paulo, em direção à capital do estado, quando vi um menino negro, maltrapilho, que perguntava aos passageiros se alguém conhecia seus pais. Contava que fugira de uma fazenda onde trabalhava de sol a sol, sem direito a frequentar escola, em regime análogo à escravidão. Sem que ninguém pudesse responder à sua pergunta, desceu em qualquer estação, sem rumo nem esperança.
Se esse menino tivesse aprendido a ler, como eu, que tive a oportunidade ainda antes dos 5 anos, talvez tivesse formado um repertório que lhe daria, como deu a mim, uma reserva mental de resistência às muitas adversidades da vida, sobretudo a dos destituídos. Não foram em vão a Bíblia, que lia sem entender, apaixonada pela leitura em si, e os livros doados por uma ex-patroa de minha mãe. Se aquele menino soubesse ler, talvez não levasse no rosto a expressão de total desamparo.
O impacto pessoal desse episódio confirmou que a militância na luta pela igualdade, para mim, não era mais, talvez nunca tivesse sido, uma questão de opção. Isso ficou ainda mais claro quando, no fim dos anos 90, fui estudar nos Estados Unidos. Cursando mestrado na Universidade Columbia, vivi por um ano no Harlem, o bairro negro de Nova York, onde me envolvi com a vida da comunidade e passei a estudar questões raciais e de gênero sob uma perspectiva crítica.
Trouxe na bagagem, além do diploma, a certeza de que o racismo não deve ser um tabu, um tema a ser evitado. Lá, onde a divisão entre negros e brancos é mais nítida, as pessoas não tentam fingir que o problema não existe. Ele existe, sim, e é alvo de políticas públicas e privadas. Elas nem sempre funcionam, mas só o fato de existirem já faz diferença.
É por isso que o nosso movimento tem importância, o que, de resto, a forte reação nas redes sociais só faz realçar. Por que defendemos um Poder Judiciário e um Ministério Público com maior diversidade? Porque, ao fazer isso, estamos defendendo a ideia de que as instituições reflitam a sociedade heterogênea que somos, o que, na essência, significa defender a própria democracia em seu sentido mais profundo.
No Brasil, para uma população 54% negra (incluídos os pardos), apenas 14% dos juízes e 2% dos procuradores e promotores públicos são negros — uma desproporção que tem consequências nefastas. Não se trata de ser favorável a que juízes e promotores negros atuem em casos que envolvam negros. Isso seria tão absurdo quanto o seu oposto: juízes e promotores brancos para réus brancos.
Juízes devem ser imparciais em relação a cor, credo, gênero, e além disso os mais sensíveis desenvolvem uma empatia que lhes permite colocar-se no lugar dos desfavorecidos socialmente.
Como é natural no ser humano, porém, nossa visão de mundo é moldada por nossas experiências pessoais e, sobretudo, por nossas circunstâncias, entre as quais o gênero, a cor e a classe social. É por isso que a ausência de diversidade no Judiciário e no Ministério Público é um problema social.
Nos Estados Unidos, várias ONGs se dedicam a defender réus já condenados. Como resultado do trabalho de apenas uma delas, 353 presos (alguns aguardando a pena de morte) foram inocentados em novos julgamentos desde 1989. Desses, 219 eram negros. No Brasil é uma incógnita o avanço social que seria obtido por uma Justiça cega à cor. O fato é que vivemos numa sociedade homogênea quando se trata de ocupação de espaço de poder.
O Conselho Nacional de Justiça deu um passo na direção certa. Em 2015, implantou um sistema de cotas em concursos de magistratura, reservando 20% das vagas para afrodescendentes. O Conselho Nacional do Ministério Público adotou a mesma política em concursos para cargos de procuradores e promotores em junho de 2017. Como outras ações afirmativas, essas também visam a reparar atrocidades históricas decorrentes da escravidão. Mas a discrepância das oportunidades ao longo de toda uma vida impede que tais vagas sejam preenchidas.
Escrevo tendo em mente o clamor que identifico no rosto das pessoas que veem no Judiciário ou na intervenção do Ministério Público sua última esperança — uma sensação que aquele menino do trem havia perdido, talvez para sempre. Enquanto não for bom para todos, não será bom para ninguém.
* Mylene Pereira Ramos é juíza do Trabalho, mestre em direito pelas universidades Columbia (Nova York) e Stanford (Califórnia)
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2018, edição nº 2566