Por convenção, o fim do ano convida a revisões e reavaliações pessoais e coletivas. Sobreviver a mais um ciclo de 365 dias é como chegar ao alto de um promontório, no qual esperamos encontrar esta rara dádiva: a perspectiva. Não há, no entanto, razão objetiva para que seja assim só no réveillon. Ao longo de todo o ano, livros, músicas, filmes, séries nos ofereceram a mesma perspectiva. O humor de Paul Beatty e o hip-hop de Kendrick Lamar abrem-se para novas visões sobre o drama racial americano — e a biografia de Lima Barreto e a ficção de Alberto Mussa, sobre as divisões sociais brasileiras. A aventura imersiva de Dunkirk fez o espectador ver a história de dentro, a série Mindhunter mergulhou no horror da alma dos assassinos, o esperado novo disco de Chico Buarque reconectou o ouvinte a uma rara e delicada sensibilidade lírico-musical e até o pop de massa de Taylor Swift oferece intuições sobre a experiência de amadurecer no século XXI. Nas próximas páginas, VEJA elencou os melhores livros, discos, filmes e séries de 2017. Todos merecem ser revisitados no novo ano — quando, mais do que nunca, precisaremos de perspectiva.
1 – O vendido, de Paul Beatty
(tradução de Rogério Galindo; Todavia; 320 páginas; 54,90 reais ou 36 reais na versão digital)
O jovem Eu — sim, é esse é o seu sobrenome — parece decidido a reverter toda a história do movimento dos direitos civis americanos no século XX. Ele consegue reinstaurar a segregação racial em um ônibus de uma linha suburbana de Los Angeles e, em seguida, dedica-se a fazer o mesmo em uma escola. Na propriedade em que planta maconha e melancias, sua reversão de direitos vai mais longe: lá trabalha (bem pouco, na verdade) um escravo, o velho Hominy — que adora um castigo físico. O próprio Eu, protagonista e narrador deste romance anárquico do americano Paul Beatty, é negro. Foi educado pelo pai, um alucinado militante e cientista social que usou o próprio filho em uma série de perigosos experimentos sociorraciais. Com uma prosa rápida e ferina que despeja tiradas e provocações sem pausa para que o leitor recupere o fôlego entre uma e outra gargalhada, Beatty realizou uma brilhante encenação satírica das tensões raciais que ainda assombram a sociedade americana.
2 – Leonardo da Vinci, de Walter Isaacson
(tradução de André Czarnobai; Intrínseca; 640 páginas; 69,90 reais e 44,90 reais na versão digital)
Veterano jornalista da Time e da CNN, Isaacson escreveu a melhor biografia do americano Steve Jobs (1955-2011), fundador da Apple, e também do físico alemão Albert Einstein (1879-1955), criador da teoria da relatividade. Ao se debruçar sobre a vida do renascentista Leonardo da Vinci (1452-1519), ele atinge o ápice como biógrafo: o livro é um estudo magistral do gênio que sintetiza todos os outros. Tendo por matéria-prima as mais de 7 000 páginas de anotações do mestre, o autor esmiúça a criação de obras-primas como a Mona Lisa e desvenda pontos nebulosos de sua trajetória, como sua homossexualidade. O maior feito de Isaacson, contudo, é demonstrar como a personalidade desajustada e a curiosidade obsessiva fizeram de Da Vinci um gênio profundamente humano.
3 – A hipótese humana, de Alberto Mussa
(Record; 176 páginas; 34,90 reais ou 24,90 reais na versão digital)
Quarto título de uma planejada série de cinco romances policiais ambientados no passado do Rio de Janeiro, A Hipótese Humana tem a solução surpreendente e o desenvolvimento envolvente que se espera de um bom noir. E é também um vivo passeio ficcional pelo Rio do século XIX. No momento mais brilhante do livro, o professor de latim e detetive diletante Tito Gualberto, ele mesmo mestiço, visita uma senzala para interrogar negros sobre a morte misteriosa da sinhazinha da casa, e lá descobre complexas relações de poder entre os escravos. Alberto Mussa tem o dom de, sem jamais soar anacrônico ou avoengo, conduzir o leitor ao tempo passado de suas narrativas.
4- O ruído do tempo, de Julian Barnes
(tradução de Léa Viveiros de Castro; Rocco; 176 páginas; 29,50 reais ou 19 reais na versão digital)
Stalin foi à ópera em 1936 — e não gostou do que viu e ouviu. Pouco depois, o Pravda, jornal oficial do regime soviético, trazia um editorial que atacava a peça em cartaz naquela noite — Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk. Acusado de “formalismo”, o compositor Dmitri Shostakovich (1906-1975) caiu em desgraça — e é sua desgraça que Julian Barnes descreve neste romance, baseado na conturbada vida do músico. Com magistral equilíbrio entre rigor factual e liberdade imaginativa, Barnes, um dos melhores escritores ingleses da atualidade, examina a difícil relação entre um grande artista e o poder totalitário que deseja controlar sua criatividade.
5 – Lima Barreto — triste visionário, de Lilia Moritz Schwarcz
(Companhia das Letras; 656 páginas; 69,90 reais ou 39,90 reais na versão digital)
Em manuais escolares de literatura, Lima Barreto (1881-1922) ocupava um estranho não lugar: era classificado de “pré-modernista”, como se Triste Fim de Policarpo Quaresma e outros trabalhos vigorosos servissem apenas para anunciar a vanguarda paulista (que o autor, em seu último ano de vida, viu com reticência). A cuidadosa biografia da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz confere a Lima Barreto um lugar muito particular na cultura brasileira: o escritor negro que, em uma obra vasta e turbulenta, confrontou preconceitos raciais de seu tempo e retratou a vida nos subúrbios cariocas; o homem brilhante mas assombrado pelo alcoolismo; o crítico social da Primeira República. A autora examina as origens familiares, a educação, a formação e a evolução intelectual do biografado para compor o retrato de um autor que “escrevia usando de sua dor”.
Publicado em VEJA de 27 de dezembro de 2017, edição nº 2562