Apesar da febre incessante que o incomodava desde os últimos dias de fevereiro, o padre Fausto Resmini, de 67 anos, capelão do cárcere da cidade de Bérgamo, na Lombardia, seguiu dando assistência aos presos e aos sem-teto entregues à própria sorte no epicentro italiano da epidemia de coronavírus. Quando Arturo Bellini, seu colega de sacerdócio, perguntou como ele estava, respondeu que se sentia bem. “Por aqui, você sabe, as necessidades são muitas”, ressaltou. Entubado em 6 de março, Resmini testou positivo para a Covid-19 — no dia seguinte, a diocese suspenderia oficialmente os serviços religiosos e a região lombarda seria isolada.
Mesmo internado, ele ainda quis convencer os médicos a deixá-lo sair para acalmar um motim na prisão onde trabalhava fazia trinta anos. O capelão morreu na manhã de 23 de março, quando a Itália atingiu a marca de 6 000 mortos. Resmini é um dos 24 padres católicos contaminados que perderam a vida nas últimas três semanas em Bérgamo — no país, são quase setenta. “Os sacerdotes compreenderam desde o começo a gravidade do momento”, explicou Bellini a VEJA, recuperado de uma semana de febre. “Lutamos para encontrar o ponto certo entre atender às necessidades da população e a ordem de manter distância.”
O bispo de Bérgamo, dom Francesco Beschi, diz que pelo menos cinco dos clérigos que morreram eram jovens e “caíram em serviço”. Outros eram mais velhos, mas ainda ajudavam em suas paróquias. O padre Giuseppe Belotti, que também experimentou os flagelos da Covid-19, acredita ter sido contaminado enquanto celebrava a missa, e teve a “sorte” de ser hospitalizado quando ainda havia leitos disponíveis. Dali em diante, tudo piorou. “Vi pessoas entubadas à beira da morte e cheguei pensar que sairia dali em um caixão direto para o crematório. Os doentes não podem sequer morrer na companhia dos que lhes querem bem”, lembrou. Resmini, o capelão do cárcere, era seu amigo e foi um dos muitos que foi sepultado sem funeral.
Em uma nação 80% católica, a Igreja vem tendo papel central no combate à epidemia. No coração da Lombardia, igrejas são usadas como depósito de corpos. Outras acolhem profissionais de saúde que não podem voltar para casa. “Já não sabemos onde colocar os mortos e permitir que fiquem nas igrejas é um gesto de ternura para com as famílias dos que partem sozinhos”, diz dom Beschi. Como não é permitido aos religiosos entrar nas UTIs, a recomendação é que os próprios médicos e enfermeiros abençoem os doentes conforme suas crenças.
Quando a Peste Negra ceifou a vida de mais de um terço da população a Europa, em tempos de medicina precária e de uma influência religiosa que extrapolava largamente as paredes das capelas, cabia aos padres a função de aliviar o sofrimento físico e espiritual dos atingidos pela enfermidade. O resultado da dedicação foi um abate em massa: estima-se que a mortalidade da peste bubônica entre sacerdotes católicos tenha sido de cerca de 45%. O sofrimento extenuante, apontam alguns estudiosos, foi o fermento do pensamento racionalista que descambaria na Renascença. “A fé na Igreja foi abalada até o âmago. O público exigia uma explicação para a praga e, embora houvesse a sensação de que poderia ser uma punição pelo pecado, parecia não haver razão para isso”, escreveu a historiadora Danièle Cybulskie, da Universidade de Toronto.
Quase seis séculos depois, interpretações escatológicas são ouvidas nas rádios católicas italianas. Diante das insinuações de “castigo divino”, dom Beschi rebate: “Há muito tempo que abandonamos essa interpretação do sofrimento. A crise atual pode pertencer à dimensão da natureza ou ter uma responsabilidade humana”. Trancafiado desde que deixou o hospital, o padre Belotti faz coro ao Papa Francisco e dá à crise a dimensão de aprendizado. “Penso que essa situação nos colocou mais humildes. Hoje, uma família me trouxe o almoço em casa. Faz lembrar que não nos salvamos sozinhos”. A única certeza é que o momento é de dor — e solidariedade.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681