Uma organização religiosa reconhecida pelo Vaticano tem práticas bastante contraditórias aos seus valores. Obrigar meninas de 13 anos a fazer voto perpétuo (mesmo que isso não tenha validade perante a igreja católica), afastar crianças e adolescentes dos pais e impor castigos físicos, psicológicos e humilhações a essas mesmas crianças certamente não condiz com o que se espera de um grupo religioso.
Em 2017, os Arautos do Evangelho foram denunciados ao Vaticano por práticas que não condizem com as diretrizes da Igreja Católica. Vídeos publicados na internet na época mostram integrantes praticando exorcismos seguindo seus próprios rituais e até conversando com o diabo. Em um deles, há inclusive uma ofensa ao Papa Francisco.
Desde então, o Vaticano investiga a organização e, recentemente, o grupo tradicionalista brasileiro foi colocado sob tutela. “Lacunas sobre seu estilo de governo, a vida dos membros do Conselho (…),pastoral vocacional, formação de novas vocações, administração, gestão das obras e recuperação de recursos”, afirmou a Santa Sé.
A associação fica “sob a autoridade de um comissário”, o cardeal Raymundo Damasceno Assis, arcebispo emérito de Aparecida. Essas práticas escusas vão muito além de contravenções aos ritos da igreja católica. Uma denúncia protocolada no Ministério Público de São Paulo, onde os Arautos mantém sua sede e alguns castelos na Serra da Canteira, apontam abusos que violam diretamente o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que resguarda os direitos dos menores.
No documento, do qual fazem parte cerca de 50 pessoas entre mães e ex-integrantes, depoimentos mostram que crianças e adolescentes que vivem no internato mantido pela organização são vítimas de assédio sexual, violência física e psicológica, bullying, alienação parental, lavagem cerebral entre outros. VEJA ouviu dez pessoas entre ex-integrantes e mães que integram o grupo que denunciou os Arautos e seus líderes. Leia os depoimentos no fim da reportagem.
Arautos x TFP
Os Arautos do Evangelho são conhecidos por vestirem hábito marrom e branco, com uma grande cruz no peito, no estilo dos cavaleiros medievais. Fundados em 1997 por João Scognamiglio Clá Dias, a organização é uma costela da associação tradicionalista TFP (Tradição, Família e Propriedade). Ao longo de trinta anos, Clá foi homem de confiança de Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP.
Em 2001 os Arautos conquistaram o título de Associação Internacional de Direito Pontifício, concedida por João Paulo II. Ou seja, são concebidos como um “dom de Deus, um carisma útil e necessário para o bem da Igreja e do mundo”. Hoje, a entidade está presente em aproximadamente setenta países. Tem cerca de 200 sacerdotes e milhares de membros.
A TFP e os Arautos são organizações com princípios católicos, conhecidas pelo culto a ícones medievais e por estimular condutas rígidas entre seus integrantes, em tom reacionário. Mas há uma diferença radical entre as duas turmas. Os Arautos têm um ramo clerical, a TFP sempre andou totalmente à margem e dedicou-se em desempenhar um papel político.
Internamente, todos os atos a associação são voltados para a conquista do “Reino de Maria”, o reino perfeito e prometido nas aparições de Fátima, em Portugal, em 1917. Mas ele só surgiria após um período de grande instabilidade – uma espécie de apocalipse – chamado de “bagarre”.
Seus símbolos são castelos que servem de moradia e instalações para rituais cristãos. Para aumentar o número de membros, os Arautos atraem crianças que se encantam com a possibilidade de morar nesses castelos que só veem em contos de fadas e com a beleza e perfeição dos movimentos e modo de agir dos integrantes.
Modus operandi
Segundo relatos, o modus operandi da organização para atrair crianças funciona da seguinte maneira: representantes dos Arautos vão a igrejas e escolas e se apresentam aos jovens. Esses integrantes são treinados para apresentar um projeto social, chamado Projeto Futuro e Vida, que oferece aulas gratuitas de teatro, música e artes marciais aos finais de semana.
A seleção ocorre oficialmente por sorteio. Mas todas as fontes ouvidas por VEJA, sem exceção, afirmam que os Arautos escolhem os estudantes que atendam às preferências da instituição: crianças brancas de classe média ou baixa, que não contestam muito.
Uma vez selecionados, os jovens são convidados a participar dessas atividades, que são realizadas em uma das casas da organização, chamadas de senáculo ou casa de apostolado. Essas são construções convencionais, localizadas em várias cidades no Brasil e no mundo.
No início, as crianças apenas passam o dia. Com o passar do tempo, elas são convidadas a pernoitar durante o final de semana. É aí que as regras e os hábitos dos Arautos começam a ser ensinados com maior ênfase. Depois de um período frequentando assiduamente o lugar, alguns são selecionados para ganhar uma bolsa para estudar na escola mantida pelos Arautos.
Em São Paulo, o colégio fica em Caieiras, zona norte da capital. Na maioria dos casos, o convite prevê um regime de internato. Ou seja, além de frequentar o colégio dos Arautos, as crianças devem morar em uma das casas mantidas pela instituição.
Meninas e meninos vivem e estudam separados. Eles pertencem à Ordem Primeira e elas, à Ordem Segunda. Também há uma hierarquia nas acomodações, ao menos na Ordem Segunda. Em geral, as novatas moram nos senáculos. Conforme elas se adequam às regras, são transferidas para outras casas ee castelos, onde as regras são mais rígidas. Segundo fontes, toda transferência depende da autorização de João Clá, que é chamado de “papito” pelas meninas.
Idolatria
A adoração pelo líder Clá Dias é incontestável. Segundo relatos,desde o período de apostolado – quando as crianças participam do projeto social – , monsenhor João (como Clá é chamado lá dentro) é enaltecido. Ao ingressarem de vez na rotina do grupo, as crianças já veneram o fundador.
Elas são orientadas a se consagrar como suas “escravas” e passam a receber, como recompensa por seu bom comportamento, objetos chamados de relíquias. São fotos, retalhos de roupas e até mesmo partes do corpo, como fios de cabelo, pedaços de unha e até sangue de João Clá. As relíquias incluem também imagens de Plínio e Lucília (mãe de Plínio). Papeis de bala que Clá come ou distribui para as crianças também são guardados.
O trio é venerado lá dentro e forma quase uma santíssima trindade, segundo ex-integrantes. Rituais de exorcismo e orações são feitas usando o nome dos três, em vez dos nomes de Jesus ou santos da igreja Católica. Nas casas, imagens do trio estão espalhadas pelos cômodos. Nas escolas, crianças têm caderno com a capa de João Clá.
A água usada para lavar as vestes do monsenhor é considerada sagrada e usada para bençãos ao em cerimônias para “expurgar demônios”. As meninas pedem para que a encarregada de lavar a roupa de papito (João Clá) encham garrafas com essa água. A do colarinho, elas contam que bebem, pois teriam poderes curativos.
Embora homens e mulheres não devam se tocar, conversar nem mesmo conviver, Clá mantém um contato bastante próximo com a ordem feminina, segundo relatos ouvidos por VEJA e depoimentos entregues ao MPSP. A cerimônia dos ósculos é um desses momentos. Monsenhor chama algumas integrantes e dá beijos no rosto. Também há relatos de beijo na boca.
Agressão
Vídeos mostram Clá batendo com papeis na cabeça de meninas supostamente possessas, durante rituais de exorcismo. Também é possível ver o fundador dando tapas ou empurrando seus rostos. Mas esse não é o único momento que agressões são relatadas. Na cerimônia de crisma, é comum Clá dar um tapa no rosto das meninas. Quanto mais forte o tapa, maior a graça, segundo as ex-integrantes.
Sara Silva Nascimento, de 17 anos, frequentou o projeto Futuro e Vida por dois anos antes de ganhar a bolsa para o colégio. Ela foi “recrutada” na catequese. L.M.M.S, de 19 anos, que pediu para não ser identificada, tinha 9 anos quando começou a frequentar o Projeto Futuro e Vida.
Os Arautos foram até a escola de sua irmã mais velha, que foi sorteada para o curso. Como era a irmã que cuidava de L.M.M.S, ela começou a frequentar o lugar. Com apenas 10 anos, ganhou a bolsa para o colégio. Sua irmã não foi escolhida. “Ela era muito questionadora e não tinha o perfil que eles queriam”, conta L.M.M.S.
Vivendo nos Arautos
Nos Arautos, a rotina é extremamente rígida e regrada. Todos devem respeitar o Ordo, livro de regras que determina desde como arrumar a cama e fazer o sinal da cruz até como pentear o cabelo, tomar banho e lavar as mãos (sim, há uma ordem correta para todas essas coisas).
A rotina é bastante rígida. De manhã as crianças acordam antes das 6h00, rezam, tomam banho, comungam, tomam café da manhã, escovam os dentes e vão para a escola. Ao chegar lá, a ida até a sala de aula é em marcha. É preciso esperar o professor em pé, em “posição de firmes”. Entre as aulas, tem a hora do lanche e a comunhão, claro. No final, as crianças voltam para o êrimo (a casa onde moram) e almoçam.
No período da tarde, elas se dedicam a lições de casa, funções designadas pelos encarregados ou leem um livro. Depois, tem outra comunhão, cerimônia de encerramento da adoração, lanche da tarde e missa no tabor (sede dos Arautos). A noite, assistem a um vídeo de monsenhor João (como João Clá é chamado internamente). O conteúdo varia entre mensagens sobre doutrinas dos Arautos ou sobre o dia de Clá. Em seguida, é servido o jantar. Antes de dormir, há uma período para quem quer ligar para os pais. Oração da cama e, no máximo 21h30, cama. Apenas as eremitas mais velhas (maiores de 18 anos), dormem sozinhas.
Tudo isso é orientado pelo toque de sinos. Os jovens também recebem funções lá dentro, que podem ser tocar o sino, arrumar a mesa durante as refeições, ficar responsável por uma criança mais nova ou ajudar nas missas e orações.
Quem chega atrasado a alguma atividade ou descumpre o ordo, é punido. O castigo pode ser uma humilhação pública, ter que carregar um objeto – como um travesseiro ou instrumento musical – durante toda a semana, para todos os lugares, inclusive para a escola; rezar, perder uma função importante, não poder usar o hábito (que lá dentro é símbolo de status) ou fazer a refeição em pé.
Na escola, o ensino é direcionado. “A gente só aprende mesmo matemática, português, química e física. As matérias de humanas são alteradas. Em filosofia, a gente assistia vídeos de monsenhor João explicando o que é belo e o pulcro. Em sociologia e história víamos só idade média e hierarquia. Em biologia, a gente nunca aprende sobre o corpo humano. A gente para no mundo ali”, conta Sara.
O corpo, os órgãos sexuais e inclusive a menstruação são tabus. Não se deve falar sobre o assunto. Meninas que passam a viver no local muito novas e têm pouco contato com os pais, nem sabem o que está acontecendo quando atingem a puberdade. Tocar o colega e até mesmo olhar para o próprio corpo são atos proibidos. Assim como assistir televisão ou usar o celular. Música, só cantos gregorianos e telefonemas à família são supervisionados.
Cerimônia secreta
Uma das cerimônias mais secretas dos Arautos, relatadas pelos ex-integrantes é chamada de “Capítulo”. Funciona como um rito de passagem interno e, segundo eles, cada integrante é capitulado pelo menos uma vez dentro da instituição.
Funciona assim: Arautos de uma mesma casa fazem um cortejo até uma igreja ou capela do grupo. No caminho, cantam a oração do Espírito Santo. Ao chegarem ao local, as portas e janelas são fechadas, os presentes se posicionam em círculo e a pessoa escolhida para ser capitulada – pode ser mais de uma pessoa – vai para o meio.
Ela deve deitar no chão, com a testa encostada no piso e os braços abertos. Sem se mover, permanece ali enquanto acusações são feitas por todos os presentes. Ex-integrantes afirmam que a cerimônia pode durar até 12 horas. Após o fim das denúncias, que podem ser mentirosas, o acusado recebe sua penitência. É comum menores de idade relatarem que foram capitulados ou, no mínimo, que presenciaram a cerimônia.
Afastamento dos pais
Quando passam a viver em regime de internato, as crianças mergulham de fato nas crenças pregadas pela instituição. Qualquer pessoa que não se adapte à rotina, é convidada a se retirar. É a partir desse momento que os filhos começam a se afastar dos pais.
As crianças e adolescentes têm uma rotina cheia, mesmo aos finais de semana e durantes as férias, e acabam indo para casa cada vez menos. Além disso, os jovens aprendem que, nos Arautos, sua família são papito (joão Clá), Plínio e Lucilía). Eles aprendem também que sua família original, que está fora dos Arautos, é a origem de todo o pecado e do que há de ruim neles e, portanto, devem manter distância. A sigla usada internamente para se referir à família é FMR, que significa fonte de minha revolução.
Os Arautos que vão muito para casa, são chamados de mocorongo ou sabugo, que são insultos internos fortíssimos. Além disso, essas crianças começam a sofrer bullying e ficarem isoladas. Para se integrar ao grupo, passam a ter o comportamento aceito, que é voltar para casa o mínimo possível, não telefonar para os pais entre outros.
“Já está mais do que provado que os Arautos do Evangelho mantêm uma programação com o mesmo regulamento da TFP. Nesse regulamente está escrito exatamente a forma como eles devem atuar recrutando crianças em escolas. Esse recrutamento começa a partir dos 9 anos de idade e é nessa faixa etária que eles já começam a impor o isolamento, o afastamento da família e a indução à vocação com uso de hábito. São eles que recrutam a criança onde ela está, não o contrário. Essa conduta é que está errada e isso tem que acabar.”, afirma a advogada Rosiley Piva, que é uma das integrantes da denúncia e tem uma sobrinha dentro dos Arautos.
Os efeitos destes abusos deixam sequelas. Em geral, os jovens que saem dos Arautos têm uma grande dificuldade para se adaptar à vida fora da organização, tanto pela questão dos costumes quanto porque perderam todo o contato e ligação com as pessoas que deixaram aqui fora.
Eles têm traumas psicológicos e, frequentemente, precisam recorrer a ajuda de um psicólogo ou psiquiatra. Aqueles que saem em idade escolar, precisam correr para conseguir acompanhar o conteúdo escolar, já que há uma defasagem no aprendizado internamente e quem sai depois de terminar a escola, talvez tenha ainda mais problemas, pois tem dificuldade para entrar na faculdade ou arrumar um emprego.
Leia abaixo os depoimentos ouvidos por VEJA:
Sara Silva Nascimento, 17 anos, ex-Arauto: “A gente entra muito nova nos Arautos e vai sendo doutrinada. Lá dentro a gente aprende a receber ordens e obedecer. Não tem escolha. Eles dizem que se você está lá é porque papito disse que você tem vocação. A gente passa a ver a figura de Deus no fundador. Se monsenhor João chega e beija a sua boca, é uma graça. Receber o hábito, que é a veste sagrada, é algo muito importante. Na cerimônia para recebe-lo, a gente se prosterna no chão diante de papito [João Clá] e entrega a castidade, a obediência e a humildade. É um processo semelhante ao do voto perpétuo. Lá dentro eles falam que nosso pai é monsenhor João, então a gente não precisa dos pais. Eu ligava para a minha mãe obrigada e ia para casa no máximo uma vez por mês. A saúde não é algo que importa para os Arautos. Eu tenho asma, passei mal diversas vezes lá e não recebi ajuda. Cheguei a desmaiar por falta de ar algumas vezes ou ir para o hospital quase morrendo. Eu mesma não me preocupava em fazer o tratamento direito. Eu fugi de casa duas vezes depois que minha mãe me tirou dos Arautos. A gente não consegue se desprender com facilidade. Na escola, o baque foi muito grande, mas graças a isso que eu consegui me abrir. Até hoje eu tenho consequências do ordo. Ás vezes eu tomo banho na sequência que o ordo exige ou fico parada com o pé em ‘v'”.
Flávia Silva Nascimento, 42 anos, dona de casa e mãe de Sara: “Quando a Sara ganhou a bolsa para o colégio, eu achei ótimo porque ela ia estudar em um colégio internacional, particular e ter uma educação que a gente não tinha condições de dar. Nos primeiros meses foi muito difícil ficar longe dela. É engraçado porque toda vez que ela ia, eu sentia uma angústia muito grande, um sentimento de perda. A Sara sempre foi uma menina muito espevitada e muito alegre. Ela gostava muito de abraçar e beijar. Os Arautos tiraram totalmente isso dela e deixaram ela extremamente arrogante, exigente e chata. Ficou impossível o convívio com ela dentro de casa. Além da mudança de comportamento, eu comecei a achar algumas coisas estranhas lá dentro, que não condizem com as práticas da Igreja Católica. Quando eu decidi tirar ela de lá, eles tentavam a todo momento me convencer a não fazer isso. Eu só fiquei sabendo tudo o que ela passou lá dentro depois de um ano e meio que ela saiu. Fiquei completamente indignada. Ás vezes dá revolta e raiva porque ela nunca me contou nada. Também sinto remorso por ter colocado ela lá dentro. Você coloca lá dentro a mais bela princesa que você tem e ela sai um monstro, totalmente robotizada, sem sentimento nenhum. Eu não sei como eles conseguem fazer isso com as crianças.”
Fernando Reis, 31 anos, estudante de direito, ex-arauto: “Eu entrei nos Arautos aos 13 anos e sai com 25. Comecei no projeto Futuro e Vida depois de um ano fui convidado para morar na sede em São Paulo. Na época, ainda não existia uma escola dos Arautos, então eu estudava em uma escola pública que ficava ali perto. Lembro que uma vez, sofri um acidente de moto e me proibiram de contar isso para a minha mãe. Quando você passa a morar lá, você rompe completamente com o mundo. Eu fui capitulado pela primeira vez aos 15-16 anos. Eles te ensinam que é santificante passar por uma humilhação assim. Lá dentro, é monsenhor João que decide tudo. Eu fui designado para coletar donativos. Há uma escola interna que ensina como fazer isso. Quando eu tinha 25 anos, fui convidado para sair. Você sai com um pé na frente e outro atrás porque lá dentro você vive em uma bolha. Eu demorei muito para me reprogamar aqui fora, conseguir um emprego, me relacionar e voltar a ter uma vida normal.”
Michael Ulriksen, 37 anos, advogado, ex-arauto: “Eu tinha 14 anos quando conheci os Arautos aqui em Viña de Mar (Chile), onde moro. Rapidamente, me encantei com o karatê e a doutrina católica. Tinha certeza que só ali eu podia dar o melhor de mim e ser uma pessoa boa. Quando você começa a ficar perto dos Arautos, você tem que se afastar de todos que estão fora dali porque essas pessoas colocam em risco sua vocação. Eu passei a morar lá depois de 7 anos frequentando. Os Arautos do Evangelho ensinam a doutrina católica conservadora. Por outro lado, no primeiro dia que você está lá, você começa a idolatrar João Clá. O que ele diz, é regra. E você começa a perceber que eles só se importam com a instituição e não com as almas nem em fazer caridade. Eu comecei a questionar algumas práticas internas e fui expulso. O choque psicológico de sair de lá é enorme porque você não tem mais nada fora do Arautos. Quando você sai, você não sabe se virar. Você não tem mais amigos, se afastou da sua família e não tem uma profissão. A única família e amigos que você tem, são Arautos. E, do dia para a noite essas pessoas te dão as costas sem o menor escrúpulo.”
Maria Paula Pinto, 22 anos, confeiteira e ex-arauto: “Eu conheci os Arautos quando tinha 10 anos, pelo projeto Futuro e Vida, na Colômbia. Logo passei a morar na sede e me disseram que se eu tinha convidada para ficar na sede, é porque monsenhor João disse que eu tinha vocação. Eu lembro que perguntei como ele sabia disso e me disseram que é porque ele tem ‘discernimento dos espíritos’ e ele sabia para o que eu tinha sido chamada ao mundo. Aos 12 anos, fui convidada para morar no Brasil e passei a ter um convívio próximo com o monsenhor João. Lembro que um domingo, depois da missa, monsenhor João me chamou para confessar, em particular. Ao chegar na sacristia, eu vi que ele deu um beijo na boca de uma menina. Logo depois, ele me abraçou e fez o mesmo comigo. Me deu um beijo na boca. Em uma outra ocasião, novamente na sacristia, eu vi ele pegar a cabeça de uma menina que estava ajoelhada e levar para perto das partes íntimas dele. Quando eu tinha quase 15 anos, pedi para voltar para casa. Eu já não aguentava mais a pressão e a rotina. Os Arautos tiraram minha personalidade. Eles fazem tanta coisa para te quebrar e construir a pessoa que eles querem lá dentro que quando eu saí, eu tinha muitos problemas psicológicos. Eu não sabia rir. Não sabia andar nem falar como uma pessoa normal. Quando meus pais ficaram sabendo, eles queriam matar os Arautos. Acho que eles não se perdoam por terem me deixado ir. A única coisa que ficou de positivo em mim dessa época, é que eu acredito que que existe um Deus ou algo superior a nós. Acho que agora eu sou muito feliz. Foi difícil, mas consegui.”
L.M.M.S, 19 anos, estudante, ex-arauto: “Eu vivi nos Arautos dos 10 aos 15 anos. Quando fui convidada para a escola e para morar lá, meus pais viram isso como uma oportunidade de eu ter uma boa educação. Mesmo muito nova, me colocaram em uma casa que tem regras muito rígidas. Quem chegava atrasada em algum compromisso, era humilhada na frente de todo mundo e ainda recebia uma penitência. Eu voltava para casa todo final de semana e sofria muito bullying por isso. Eu era excluída. Quando brincávamos de polícia e ladrão, as meninas que voltavam para casa sempre apanhavam muito. Uma vez eu quase fui afogada na piscina por outra menina. Ela dizia que era para eu me acostumar para um hipotético passeio futuro no mar com o João Clá, que dava caldo em todas. Uma outra menina que estava com ela, dizia que eu era mocoronga porque ia para casa aos finais de semana. A encarregada da minha casa viu tudo e não fez nada. Tudo isso tem um peso psicológico muito grande. Você é uma criança que fica totalmente excluída. Depois de seis meses, eu deixei de ir para casa. Só voltava quando precisava de dinheiro. Parei de abraçar meus pais. Eu era fria e era difícil para mim ser assim. Ao mesmo tempo, eu acreditava que era o certo a fazer porque o tempo te ensinam que seus pais são ruins e são fonte de tudo de ruim que existe em você. O ambiente dentro dos Arautos é cruel. Eu comecei a ficar muito mal porque via muita coisa errada, com as quais eu não concordava, como as humilhações, o racismo, a cerimônia dos ósculos e a falta de caridade. Fiquei dois meses sem voz e passei por um exorcismo porque achavam que isso estava acontecendo porque estava possuída. Um dia, do nada, disseram que eu tinha que voltar para casa porque eu era quieta demais e esse não era o perfil que eles queriam. Meu mundo desmoronou. Eu cresci lá dentro. Eu não tinha outra realidade senão aquela e simplesmente me despacharam igual cachorro. No início, mesmo fora, eu continuei vivendo de acordo com a doutrina. Eu chorava de ter que usar calça para ir a escola. Eu não falava com ninguém no intervalo porque tinha medo de ir para o inferno. Não sentava perto dos meninos. Hoje eu tenho uma vida normal, mas foi difícil. Eu nunca recuperei a relação com os meus pais porque, querendo ou não, que me criou foram os Arautos. Até hoje eu sonho com os Arautos praticamente todos os dias.”
Amanda Merotto Reinders, 25 anos, auxiliar de curso livre, ex-arauto: “Dentro dos arautos, principalmente na ordem segunda, as meninas não acreditam que João Clá possa morrer um dia. Ele é uma ídolo, um deus lá dentro. Tanto que nas nossas orações pessoais, a gente rezava pela cura milagrosa do João Clá quando ele ficou doente. A gente acreditava piamente que ele ia ser curado, a bagarre iria chegar e ele ia lutar na bagarre e fundar o Reino de Maria. Eu temo que o fato de as meninas que ainda estão lá não acreditarem na morte dele, é algo muito preocupante. Elas não estão sendo preparadas para isso e ele pode morrer a qualquer momento. Eu temo inclusive, um suicídio coletivo quando isso acontecer. Essa preocupação não é infundada porque isso já aconteceu antes, com Jim Jones (fundador e líder do culto Tempo dos Povos). As pessoas precisam entender o quão perigoso e doentio isso é lá dentro e alertar quem ainda tem conhecidos ou familiares lá”.