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Rachadinha tem rara punição — mas julgamento no STF pode mudar isso

Corte deve se debruçar ainda neste ano sobre um caso emblemático, e a decisão deve se tornar uma referência para os processos futuros ou em andamento

Por Reynaldo Turollo Jr. Atualizado em 4 jun 2024, 13h25 - Publicado em 5 nov 2021, 06h00
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  • Depois de o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filhos do presidente Jair Bolsonaro, terem elevado a rachadinha — prática antiga (e ilegal) de recolher parte dos salários de assessores — a um dos temas centrais do debate político (e criminal) no país, foi a vez de outro peixe graúdo ser arrastado para o rol de suspeitos: o ex-presidente do Senado e atual comandante da poderosa Comissão de Constituição e Justiça, Davi Alcolumbre (DEM-AP). As acusações, reveladas em reportagem de VEJA na semana passada, já pressionam o parlamentar: o Podemos, dono da terceira maior bancada da Casa, pediu o seu afastamento da presidência da CCJ; o procurador-geral da República, Augusto Aras, informou que vai analisar os dados para decidir se abre um inquérito; e o subprocurador-geral Lucas Furtado, do Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União), pediu uma investigação.

    A atenção despertada pelo caso não ocorre por acaso, dada a fartura de provas. O detalhamento da prática foi feito a VEJA por seis mulheres da periferia de Brasília. Elas afirmaram que, além de nunca terem trabalhado, repassavam a maior parte de seus salários ao parlamentar. Esses relatos são corroborados por comprovantes da movimentação bancária. O cartão e a senha das contas eram entregues ao suposto operador do esquema, o ex-chefe de gabinete Paulo Boudens. No dia do pagamento, ele dava a elas uma fatia minúscula do salário, ficando com o grosso do dinheiro. O acerto vigorou de 2016 até este ano, inclusive no período em que Alcolumbre presidiu a Casa, e pode ter desviado mais de 2 milhões de reais.

    arte rachadinha

    Investigar e punir é o que se espera, mas no caso das rachadinhas, há um bom motivo para duvidar do desfecho. O grande desafio para que desvios desse tipo não fiquem impunes, seja no caso de Alcolumbre, seja nos dos filhos do presidente ou nos de vários outros políticos pelo país, é que até hoje o Judiciário, por incrível que pareça, não tem um posicionamento definitivo sobre se rachadinha é crime, sujeito a prisão, ou mera irregularidade administrativa, punível com multa, por exemplo. Resultado: o Supremo Tribunal Federal até hoje nunca condenou nenhum político pela prática.

    PONTO DE VIRADA - Silas Câmara: caso chega ao Supremo após vinte anos -
    PONTO DE VIRADA - Silas Câmara: caso chega ao Supremo após vinte anos – (Pedro França/Agência Senado)

    O ponto de virada, no entanto, pode estar próximo. A principal Corte do país deve se debruçar ainda neste ano sobre um caso emblemático que se arrasta há duas décadas, e a decisão dos ministros deve se tornar uma referência para os processos futuros ou em andamento. Trata-se de uma ação penal contra o deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM), ex-líder da todo-poderosa bancada evangélica, acusado pela PGR de se apropriar, também com a ajuda de um servidor de seu gabinete, de salários de assessores pagos pela Câmara nos anos de 2000 e 2001. O julgamento estava previsto para o dia 11. No fim de outubro, no entanto, foi retirado da pauta pelo presidente, Luiz Fux, porque parte dos ministros estará participando de um seminário em Lisboa. A expectativa é que, dada a sua importância, Fux recoloque o caso em votação antes do recesso de dezembro.

    A falta de consenso sobre o que a rachadinha representa é um entrave para que os casos gerem punições. Para o advogado Augusto de Arruda Botelho, recolher salários de assessores é, sim, um crime. “A corrente majoritária considera a rachadinha como peculato”, defende. Outra corrente vê a prática como ato de improbidade administrativa, que não dá cadeia. O fato é que, a despeito de o debate jurídico existir há pelo menos vinte anos, como mostra o caso de Silas Câmara, o Congresso nunca tipificou a rachadinha como crime, apesar de haver projetos de lei que poderiam pacificar a questão. Mas isso, claro, significaria cortar a própria carne.

    HORA DE JULGAR - Fux: decisão do STF pode criar uma referência legal -
    HORA DE JULGAR - Fux: decisão do STF pode criar uma referência legal – (Nelson jr/SCO/STF)

    A história envolvendo o líder evangélico é um exemplo clássico desse tipo de prática. Silas Câmara foi denunciado em 2009 pelo então procurador-geral da República, Antonio Fernando, sob a acusação de ter se valido do cargo para fazer os desvios em proveito próprio — o que, para o Ministério Público, configura o crime de peculato, cuja pena é de dois a doze anos de prisão. A acusação traz a descrição tradicional da rachadinha, com elementos semelhantes aos da denúncia feita pelo Ministério Público do Rio contra o senador Flávio Bolsonaro e seu ex-motorista (e suposto operador) Fabrício Queiroz: após o dia do pagamento, os salários eram sacados e, em datas próximas, eram feitos depósitos em dinheiro na conta do parlamentar. “A maioria dos depósitos era de 1 000 reais, em clara tentativa de manter a discrição do esquema criminoso”, afirma trecho da denúncia feita pela PGR. O servidor que operacionalizava o esquema, ainda de acordo com a acusação, movimentou em sua conta no período investigado 96 522 reais, “valor totalmente incompatível com sua remuneração”, que foi de 22 532 reais no mesmo período. Ao todo, segundo a PGR, entraram na conta do deputado 144 948 reais, “seja por meio de depósitos identificados de seus assessores ou oriundos de depósitos sem identificação e de origem suspeita”. Em sua defesa, o parlamentar afirmou ao STF que costumava fazer empréstimos a seus funcionários, que viviam em dificuldades financeiras. Os depósitos seriam a devolução.

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    O caminho do processo também ilustra à perfeição as dificuldades para fazer andar com celeridade uma investigação desse tipo. O caso chegou à PGR em 2003, mas só virou denúncia no STF seis anos depois. O julgamento, no plenário virtual, começou apenas em novembro de 2020, mas foi adiado por uma intervenção do ministro Nunes Marques, indicado à Corte por Jair Bolsonaro, de quem Silas Câmara é aliado. Após os votos de Luís Roberto Barroso e Edson Fachin pela condenação, Marques se manifestou para que o processo fosse para o plenário presencial. Desde então, esse julgamento estava em compasso de espera até ser colocado na pauta por decisão de Fux. Problemas semelhantes ocorrem em outros processos do tipo. Apesar de iniciada em 2019, a investigação envolvendo Carlos Bolsonaro, filho Zero Dois do presidente, encontra-se em fase inicial. Desde maio o MP do Rio aguarda o Banco Central enviar os dados relativos à quebra de sigilo bancário do vereador.

    MARCHA LENTA - Flávio e Carlos Bolsonaro: investigações sobre os filhos do presidente têm muitas dificuldades para avançar -
    MARCHA LENTA - Flávio e Carlos Bolsonaro: investigações sobre os filhos do presidente têm muitas dificuldades para avançar – (Eraldo Peres/AP/Image Plus)

    Se for beneficiado com a mesma morosidade judicial, Alcolumbre terá pela frente alguns anos de relativa tranquilidade nos tribunais. Nos últimos dias, em um esforço frágil de defesa, tentou terceirizar o problema. Em entrevista ao repórter Hugo Marques, de VEJA, o mesmo que revelou o escândalo, o senador alegou que não cuidava da parte administrativa, que seria de responsabilidade do chefe de gabinete Paulo Boudens. Ao jornalista Marques, no entanto, pelo menos uma das ex-funcionárias garantiu que Alcolumbre sabia, sim, de tudo. A estratégia de negação do senador parece apostar que o caso caia no atual limbo jurídico. Politicamente, no entanto, o julgamento de Alcolumbre já caminha em ritmo acelerado, tamanha a quantidade de provas que pesam contra ele. O ex-comerciante do Amapá, que presidiu o Senado logo em seu primeiro mandato, pode se tornar recordista no quesito ascensão e queda na história do Congresso Nacional.

    Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763

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