Quem via e ouvia o senador Ciro Nogueira na manhã de 26 de julho de 2018 em um hotel de Brasília não notava no experiente parlamentar, presidente do PP, sinal algum de ambiguidade. Sentado à esquerda do candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin, ele estava ali, com representantes de PL, Republicanos, Solidariedade e DEM, para anunciar o apoio do Centrão ao tucano, um lance considerado decisivo àquela altura da campanha — o que não foi, já que Alckmin teve só 4,8% dos votos. “O senhor conseguiu a unanimidade no nosso partido”, disse ao presidenciável, que sete dias depois oficializou como vice a senadora gaúcha Ana Amélia, do partido de Ciro. A troca de alianças e a posição na chapa indicavam um casamento sólido, mas no PP não existe monogamia eleitoral. Duas semanas depois, lá estava Ciro no primeiro ato da campanha de Fernando Haddad (PT), então candidato a vice de Lula, em Teresina. O presidente do PP exaltou o ex-presidente, que estava preso, mas ainda não havia sido impedido de concorrer, e pediu votos ao petista “para o bem do Piauí”. Ciro buscava a reeleição ao Senado na chapa do governador Wellington Dias (PT), o que, afinal, conseguiria.
Passados pouco mais de três anos, esse episódio de idas e vindas deve servir de alerta a Jair Bolsonaro. Agora, na condição de ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira é o principal articulador político do governo. O PP também tem a liderança na Câmara, com Ricardo Barros (PR), e a presidência da Casa, com Arthur Lira (AL). Mesmo assim, continua sendo uma noiva que topou subir ao altar, mas em regime de separação de bens. Isso ficou claro no 7 de Setembro, quando quase ninguém do partido acompanhou Bolsonaro em seus devaneios em Brasília e na Avenida Paulista. O ministro atuou nos bastidores para apaziguar a tensão com o Supremo Tribunal Federal, e Lira colocou água na fervura do impeachment, que cabe a ele deflagrar. Os parlamentares foram no mesmo tom, deixando clara a posição da sigla: sustenta o governo, porque isso lhes interessa, mas não se confunde politicamente com Bolsonaro. E muito menos eleitoralmente. Conforme mostrou a coluna Radar, de VEJA, há alguns dias, provocado num jantar se já havia preparado uma justificativa para trocar Bolsonaro por Lula, Ciro respondeu: “Sou um homem do povo. Se o povo decidir que está com Lula, lá estarei”, disse, gargalhando, segundo um aliado.
Considerando-se como uma pista os movimentos do PP no universo dos palanques das eleições estaduais, no entanto, a brincadeira de Ciro pode deixar um sorriso amarelo no rosto de quem espera fidelidade incondicional da sigla ao presidente em 2022. Os acordos e flertes do partido não só passam longe de Bolsonaro como atraem pretendentes como João Doria (PSDB), Ciro Gomes (PDT) e Lula. Para azar do presidente, boa parte dos mandachuvas que querem distância está na região onde o partido é mais forte, o Nordeste. “Ninguém vai colocar a foto de um político rejeitado por lá, como Bolsonaro, correndo o risco desagradar ao eleitor”, diz o cientista político da UFPE Adriano Oliveira.
Mesmo no Piauí, a cujo governo Ciro Nogueira pode concorrer, lideranças do PP não romperam com o PT. Exemplo disso é a deputada Margarete Coelho, vice de Wellington Dias entre 2014 e 2018 — ela tem uma irmã e um cunhado como secretários do governo petista. No Ceará, Etevaldo Nogueira Filho e Rodrigo Nogueira, dirigentes do PP e primos de Ciro Nogueira, são aliados do governador Camilo Santana (PT) e do prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT), ambos ligados a Ciro Gomes. Outro dirigente, o deputado federal AJ Albuquerque, é filho do secretário das Cidades da gestão petista.
A infidelidade vem até de quem comanda nacionalmente o partido. O sucessor de Ciro Nogueira na presidência do PP, o deputado maranhense André Fufuca, posou para fotos e anunciou nas redes sociais o apoio a Weverton Rocha, que é do PDT mas é o nome de Flávio Dino (PSB) ao governo. Ainda no PSB, a força da aliança do partido com o lulismo em Pernambuco atraiu o deputado Dudu da Fonte, que comanda o PP local e quer ser candidato ao Senado apoiado pelo ex-presidente — ele se reuniu com Lula no recente giro do petista pelo Nordeste. O PP também tem duas secretarias na gestão do governador Paulo Câmara (PSB), que deve fechar aliança com Lula. Na Bahia, o vice do governador Rui Costa (PT) é nada menos que o presidente do PP local, João Leão, pai do líder do partido na Câmara, Cacá Leão. O PP comanda duas secretarias do governo petista, uma delas com o vice, que pretende disputar o governo — e descarta Bolsonaro. “Quando Ana Amélia foi vice, Ciro não votou nela, votou com Lula, e eu também”, lembra João Leão. Já na Paraíba, o deputado Aguinaldo Ribeiro pode concorrer ao Senado na chapa do governador João Azevêdo (Cidadania), que já franqueou o seu palanque a Lula.
O pragmatismo do PP não tem só sotaque nordestino. Em São Paulo, o partido apoia Doria desde a campanha de 2018, tem o ex-deputado Alexandre Baldy como secretário de Transportes Metropolitanos e estará com Rodrigo Garcia (PSDB) ao governo em 2022. No Rio de Janeiro, berço do clã Bolsonaro, o namoro do PP inclui até conversa com Marcelo Freixo (PSB), aliado de Lula para 2022. O PP, por ora, dá mostras de que caminhará com Bolsonaro em estados como Rio Grande do Norte — onde os ministros Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Fábio Faria (Comunicações) podem se filiar — e Rio Grande do Sul, com a provável candidatura ao governo do senador Luis Carlos Heinze.
Evidentemente, a fama de partido pouco confiável não foi construída do dia para a noite. Além do abandono de Alckmin, a legenda também declarou apoio formal a Dilma Rousseff em 2014 — dois anos depois, foi uma das primeiras a abandonar o barco governista quando o impeachment se desenhava no horizonte. A política do pragmatismo tem dado certo: um dos herdeiros da Arena, sigla que dava sustentação à ditadura, o PP tem eleito desde 2002 uma média de quarenta deputados federais (hoje tem 41) e aderido a todos os governos desde FHC, sempre em troca de cargos. Hoje, além da Casa Civil e da liderança do governo na Câmara (e mais duas vice-lideranças na Casa e uma no Congresso), a agremiação comanda o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), cujo presidente, Marcelo Lopes da Ponte, ex-chefe de gabinete de Ciro Nogueira, dispõe de um orçamento anual de 50 bilhões de reais.
Enquanto Bolsonaro provoca o país com ameaças estapafúrdias de golpe, vendo-se por enquanto protegido de um impeachment com o PP estrategicamente situado na presidência da Câmara e no coração político do governo, os profissionais do partido farejam como poucos a melhor estratégia de sobrevivência. Seja quem for o vencedor da corrida ao Planalto em 2022, um dado é certo: lá estará a turma de Ciro Nogueira para oferecer o seu pronto, caro e volúvel apoio.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756