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“Peço ao presidente que pare”

Sem controle nem sobre o próprio partido, Bolsonaro bate boca com Rodrigo Maia em um embate gratuito que põe em risco pautas essenciais para o país

Por Edoardo Ghirotto e Eduardo Gonçalves
Atualizado em 29 mar 2019, 07h00 - Publicado em 29 mar 2019, 07h00

Uma reunião sobre a reforma da Previdência com membros da Frente Nacional dos Prefeitos avançava em Brasília quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, pediu licença para deixar a sala. Restou o secretário da Previdência, Rogério Marinho, à frente dos governantes de cidades que representam 60% da população brasileira. Eis que um dos políticos levanta a voz para questionar o integrante da equipe econômica de Jair Bolsonaro. “Qual é, Marinho? Você era deputado. Esqueceu como as coisas são aprovadas?” Marinho fez uma expressão resignada, buscou se esquivar do assunto e garantiu que estava se esforçando para angariar apoio. Não convenceu.

Embora seja encabeçado por um político que passou 28 anos na Câmara, o governo parece não fazer a mínima ideia de “como as coisas são aprovadas” por lá — problema grave quando se quer levar adiante uma pauta complexa (e em boa medida impopular) como a reforma da Previdência. E não se está falando de maracutaias, coop­tação fisiológica, folia de verbas ou cargos — mas de negociação política. Bolsonaro tenta vender sua inabilidade na costura de relações com o Parlamento como um sinal de virtude: seu governo representaria a “nova política”, limpa e honesta, que não se rende aos velhos vícios de Brasília.

PRA QUE OPOSIÇÃO – Alessandro Molon, do PSB: vitórias de mão beijada (Gilmar Felix/Ag. Camara/.)

O novo vício é o bate-boca. O encontro em que os prefeitos alertaram o secretário da Previdência sobre a falta de articulação no Congresso se deu na segunda 25, quando o embate verbal entre Bolsonaro e Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, corria solto desde a semana anterior. Maia já manifestara irritação com ataques que sofria de perfis bolsonaristas em redes sociais, inflados pelo — quem mais poderia ser? — vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ). Também estava incomodado com a pressão do ministro da Justiça, Sergio Moro, para que fosse acelerada a apreciação do pacote anticrime. Bolsonaro, ainda em visita ao Chile, atribuiu a prisão do ex-presidente Michel Temer a “acordos políticos em nome da governabilidade”, o que soou aos deputados como uma desmoralização da classe política. Carlos Bolsonaro também já tinha intensificado a ofensiva contra Maia, lembrando que o sogro do deputado, o ex-ministro Moreira Franco, havia sido preso. Maia revoltou-se. Disse que o governo era um “deserto de ideias” e que não iria mais trabalhar para formar uma base na Câmara. O barraco não parou aí: na quarta-feira 27, em entrevista à Band, Bolsonaro atribuiu os problemas de articulação ao “abalo emocional” de Rodrigo Maia, nova alusão à prisão (já então relaxada) de Moreira Franco. Maia respondeu que Bolsonaro está “brincando de presidir o Brasil”. Mas também chamou uma trégua, solicitando o fim dos ataques gratuitos: “Peço ao presidente que pare”. Bolsonaro replicou sugerindo que Maia agia com “irresponsabilidade”. No meio desse bate-boca pueril, a articulação política ruía de uma vez.

A aprovação da reforma da Previdência é a prioridade máxima do governo, cuja base, no entanto, enfrentou dificuldade até para chegar ao nome do relator na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) — o delegado Marcelo Freitas (PSL-MG), anunciado na quinta 28. O fato é que Bolsonaro, próximo de completar 100 dias de governo, não tentou criar um relacionamento produtivo com o Congresso. Comportando-­se como um eterno candidato, o ex-deputado insiste no marketing que o levou ao Palácio do Planalto, afirmando que sua “nova política” não permite a troca de cargos por apoio no Legislativo.

Ao contrário do que Bolsonaro sugere, a tal “articulação política” nem sempre é sinônimo de toma lá dá cá ou de corrupção. Articulação política é a partilha de poder para formar uma base homogênea de partidos que comungam das mesmas ideias e que assumem postos-chave em áreas de interesse ou de maior afinidade. Também contempla a manutenção de boa relação com os presidentes da Câmara e do Senado e com os líderes dos principais partidos, o que garante uma agenda comum de votações. Tudo dentro de balizas republicanas, para conter o apetite voraz de parlamentares que, verdade seja dita, ainda se mostram sedentos por cargos. “É preciso ter um controle sobre a execução orçamentária para liberar emendas que, atendendo aos interesses dos parlamentares, não degringolem em corrupção ou desperdício de dinheiro público”, diz o especialista em políticas públicas Bruno Carazza, autor de Dinheiro, Eleições e Poder.

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Na “nova política” de Bolsonaro, a expectativa era aprovar projetos por meio da pressão popular na internet, sempre incensada pelas milícias digitais bolsonaristas. Mas o próprio Bolsonaro viu sua aprovação despencar 15 pontos porcentuais na última pesquisa do Ibope. Outra pretensão era formar maiorias no Congresso com bancadas temáticas. Mas o estilo agressivo de Bolsonaro e o alinhamento com o guru Olavo de Carvalho despertaram reticência até entre os evangélicos, fundamentais para sua chegada ao Palácio do Planalto. O presidente também não goza do mesmo prestígio que tinha entre os deputados ruralistas e os da segurança pública.

CLIMA HOSTIL – Protesto de deputados da CCJ contra a ausência do ministro Paulo Guedes: está-se perdendo a maioria na Câmara (Cristiano Mariz/VEJA)

Os ministros ainda fecharam as portas dos gabinetes para a interlocução. Deputados se queixam nos corredores que só conseguem marcar reuniões com eles para daqui a dois meses. É quase unânime a reclamação de que o Planalto não tem um representante que transite nos corredores do Congresso para ouvir necessidades e descontentamentos. Tal função caberia ao chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ou às lideranças do governo no Legislativo. Mas Lorenzoni mal é visto no Congresso. Na semana de largada da Previdência, ele viajou para a Antártica. Em outro episódio, reuniu vinte parlamentares num restaurante e fez um discurso apaixonado sobre a “nova política” — que ninguém sabe exatamente o que é ou como funciona. Quando acabou de falar, ouviu um apelo para que voltasse à realidade.

Na terça-feira 26, em um dos piores dias do governo até aqui, Lorenzoni foi escalado para apagar o fogo na Câmara. Encontrou um clima nada amistoso. Os líderes partidários expuseram todas as insatisfações com o presidente — falta de diálogo, retórica polarizada de campanha, destempero dos filhos nas redes sociais. Deixaram claro que não seriam “base do governo” e que a reforma não tramitaria sem alterações em pelo menos dois itens: o benefício assistencial pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda (BPC) e a aposentadoria rural. Com as orelhas quentes, Lorenzoni assentiu nas mudanças e concordou com a bomba que explodiria em seguida: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Orçamento Impositivo, que torna o Orçamento mais engessado e tira a margem de manobra do governo para contingenciar ou aplicar investimentos em outros setores. Pautada de última hora e aprovada em dois turnos em menos de três horas, a medida acumulava poeira havia quatro anos. Surgiu em 2015, sob o comando do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e teve, na época, o apoio de Bolsonaro. A intenção era limitar a ação da presidente Dilma Rousseff. Aprovada com apenas 3 votos contrários no primeiro turno e 6 no segundo, a PEC agora passa pelo crivo do Senado. Na hora da aprovação, um deputado experiente, em seu terceiro mandato, dizia, aos risos, que os deputados do PSL não faziam a mínima ideia do que estavam votando. Era verdade.

Antes da votação, realizada à noite, o governo colecionou constrangimentos na Câmara, a começar pela reunião de líderes de partidos com Maia. Os deputados foram pegos de surpresa quando a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, surgiu para participar do encontro. Desacompanhada das lideranças do governo, fez um apelo para que fosse votado em caráter de urgência um projeto contra a mutilação infantil, uma prioridade de sua pasta. Os líderes formaram um consenso para acatar a solicitação, mas estranharam o improviso da ministra, que deu as caras sem aviso, contornando o protocolo regimental. Mais tarde, os cabeças do Centrão ficaram incrédulos com telefonemas que receberam da diretoria da Anac para que fosse derrubada uma emenda que previa a liberação de agentes de segurança armados em voos. Esse tipo de pedido costuma ser encaminhado pelo Planalto às lideranças do governo na Casa, porém a Anac considerou mais efetivo buscar os deputados diretamente. A matéria caiu no plenário. Ainda na terça, Paulo Guedes faltou a uma reunião da CCJ para discutir a Previdência. Alegou que só iria à comissão após seu presidente, Felipe Francischini (PSL-PR), definir um relator. Extraoficialmente, Guedes foi alertado de que o clima hostil no Congresso não seria benéfico. Francischini reclamou da justificativa do ministro da Economia. Afirmou que não havia acordo com o governo para que fosse escolhido um relator nesta semana.

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“ESFORÇADO” Major Vitor Hugo com Rogério Marinho: liderança inexperiente (Cristiano Mariz/VEJA)

A sucessão de desencontros demonstrou a inabilidade do governo. O deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), líder na Câmara, é descrito como um político “simpático” e “esforçado” mas fraco a ponto de ser ignorado até pelos ministros de Bolsonaro. Preocupados com a atuação do Major, deputados pediram a Joice Hasselmann (PSL-SP), líder do governo no Congresso, que tomasse as rédeas, porém ela também não assumiu as negociações miúdas com seus pares. Recentemente, Joice vem se dedicando a barracos na internet: atacou aliados do governo na votação da Previdência, como Daniel Coelho (Cidadania-PE) e Kim Kataguiri (DEM-SP). Na Câmara, o PSL, partido do governo, conta sobretudo com deputados em primeiro mandato, que se elegeram colando sua imagem à do candidato a presidente e dizendo-se antipolíticos. São muito suscetíveis a pressões das redes sociais. A maioria insiste em responder no púlpito a toda e qualquer provocação da oposição, o que ajuda a obstruir votações de interesse do governo.

O comportamento de Bolsonaro é ainda mais inaceitável porque o Congresso nunca esteve tão alinhado ideologicamente com a agenda que o governo federal pretende implementar. A eleição formou uma vasta maioria de centro-direita nas duas casas do Legislativo. Na Câmara, os partidos de esquerda somados têm pouco mais de 130 deputados, número que seria inofensivo para um governo bem articulado com suas bases. O problema é que, diante da implosão das pautas federais provocada pelo presidente, a minoria consegue fazer barulho e protelar discussões. Foi assim na CCJ: o líder da oposição, Alessandro Molon (PSB-­RJ), vendeu a ida de Paulo Guedes como uma vitória. Quando ele não veio, a petista Maria do Rosário (RS) apresentou uma questão de ordem que impediu o secretário da Previdência, Rogério Marinho, de ser ouvido em seu lugar. No plenário, o sentimento rebelde deita raízes até entre quem, em tese, é da situação. Um bordão é repetido a cada novo ataque do presidente da República contra o presidente da Câmara: “Bateu no Rodrigo, bateu na gente”. A tal “nova política”, como se vê, é péssima política.

Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628

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