Não sobrou outra saída ao presidente Jair Bolsonaro a não ser recuar na postura negacionista que adotou em relação ao novo coronavírus. O passo atrás veio na semana em que o país rompeu a marca de 3 000 mortes em 24 horas e ultrapassou a triste cifra de 300 000 vítimas desde o início da pandemia. O aumento exponencial da contaminação — agora mais grave e mais letal, em razão de novas cepas em circulação no país — lotou a rede de saúde e levou à falta de leitos em UTIs de hospitais públicos e privados e de insumos necessários para a intubação de pacientes. A pressão veio de todos os lados — do Congresso ao Supremo Tribunal Federal, passando por governadores, prefeitos, empresários e sociedade civil, todos alarmados pelo nível a que chegou a crise. Bolsonaro, que já trocara o comando do Ministério da Saúde, adotou então o figurino de defensor da vacinação em pronunciamento em rede nacional de rádio e TV na terça-feira 23, não sem tentar emplacar a versão furada de que sempre se empenhou na compra de imunizantes. No dia seguinte, protagonizou um encontro no Palácio do Planalto com os chefes dos outros poderes da República no qual se ensaiou uma caminhada conjunta e organizada para colocar um fim ao pesadelo sanitário.
Governo Bolsonaro
O presidente desta semana é diferente daquele que encerrou a semana anterior vociferando contra governadores e prefeitos (que radicalizaram as restrições numa tentativa desesperada de frear o vírus) e chegou a ir ao Supremo Tribunal Federal para fazer valer, sem sucesso, a sua visão sobre como combater a pandemia. Na segunda-feira, já atenuara o discurso. No dia seguinte, em três minutos na TV, repetiu a palavra “vacina” dez vezes e não fez menção à hidroxicloroquina nem a outros medicamentos “mágicos”. Na quarta, ao lado dos presidentes do STF, Luiz Fux, da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), usou, em curto discurso, termos como “harmonia”, “solidariedade” e “a vida em primeiro lugar” ao anunciar a criação de um comitê de crise com os governadores e os outros poderes. Para alguém que já chamou a doença de “gripezinha”, entre outras barbaridades, espera-se que o presidente não tenha uma recaída e passe a minimizar a situação, um hábito que parece persegui-lo.
Até aqui, com exceção do próprio vírus, a trajetória de Bolsonaro no combate à pandemia sempre foi no sentido de acumular inimigos, incluindo dois ministros da Saúde que não aceitaram ser tutelados, um bom número de parlamentares, governadores, prefeitos e quase a totalidade da comunidade médica e científica. Mas a lista ganhou um outro peso há poucos dias, quando um texto exigindo do Palácio do Planalto ações concretas para enfrentar a pandemia, como aceleração da vacinação, coordenação nacional e medidas de isolamento social, ganhou a chancela de mais de 1 500 economistas, empresários e banqueiros, como Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles (Itaú Unibanco), além de ex-integrantes da área econômica de governos anteriores, como Armínio Fraga, Edmar Bacha e Joaquim Levy. “Esta recessão não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica”, diz um trecho. Muito mais incisiva do que as cartas recentes lançadas pelos governadores, a manifestação caiu como uma bomba no Palácio do Planalto.
A pressão de empresários se somou à ofensiva da classe política para tentar colocar Bolsonaro e seu governo no trilho certo. Um dos mais fortes argumentos para a apressar a mudança de postura são as pesquisas que circulam dentro do Palácio do Planalto mostrando que o presidente seria batido no segundo turno de 2022 por Lula. No Congresso, o clima vinha se tornando bastante hostil, principalmente no Senado, onde ronda a ameaça da instalação de uma CPI da Pandemia. O tema voltou a esquentar em meio à comoção provocada pela morte do senador Major Olimpio, o terceiro parlamentar da Casa a ser vitimado pela Covid-19. Na Câmara, entre os que continuam apoiando o presidente na gestão da crise sanitária, só sobrou o grupo mais ideológico, que reúne pouco mais de trinta dos 513 deputados. Entre os governadores, a pressão já era grande havia semanas, até entre aqueles alinhados a Bolsonaro, como o paranaense Ratinho Jr. (PSD) e o goiano Ronaldo Caiado (DEM), obrigados a elevar as restrições em seus estados para conter o vírus.
Ambos estavam na reunião da última quarta e foram testemunhas do constrangimento evidente quando o presidente iniciou a fala deixando claro que é contra qualquer medida de lockdown. Depois, os chefes de Executivo estaduais falaram sobre a importância das medidas que implementaram, incluindo toque de recolher e limitação no funcionamento até de atividades antes consideradas essenciais. Contrariado, Bolsonaro respondia que era preciso haver um “equilíbrio”. “Mas o equilíbrio para ele era nenhuma medida de isolamento. Para o governo, deveria estar tudo aberto. E tudo aberto hoje significa mais mortes”, reclamou o governador de Alagoas, Renan Filho (MDB). Logo depois de Bolsonaro, quem falou na reunião foi o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Ele terá a missão de ser um contraponto a Eduardo Pazuello, que nunca fez nada que pudesse contrariar o chefe. Queiroga anunciou que irá trazer a “comunidade médica e científica” para o ministério e que terá autonomia para atuar. Também agradou a postura do presidente em delegar a coordenação do comitê gestor a Rodrigo Pacheco, que já atua como interlocutor dos governadores.
A ampla interrupção das atividades econômicas e sociais será um teste para saber até onde vai a nova faceta do presidente. O lockdown é de fato o remédio mais amargo que se pode adotar para frear a Covid-19, ainda mais em um país que tem a sua economia combalida e que deverá ter um PIB menor que o esperado, reflexo do golpe na atividade produtiva que a crise sanitária vem impondo. Além disso, para adotar um isolamento social em larga escala, é preciso dispor de mecanismos que permitam a trabalhadores e empresários sobreviver na inatividade, o que ficou mais difícil com o novo auxílio emergencial, reduzido em alguns casos a 150 reais mensais, um quarto do valor pago no auge da crise em 2020. Mas o que governadores e prefeitos querem é apenas uma baliza nacional para a adoção dessa medida, que evite o cenário de “cada um por si” que vem prevalecendo no país. Os prefeitos das duas maiores cidades do país — Bruno Covas (PSDB), de São Paulo, e Eduardo Paes (DEM), do Rio de Janeiro —, por exemplo, criaram uma confusão com os governadores de seus estados e os prefeitos vizinhos ao antecipar feriados até de 2022 para decretar um megaferiado de dez dias a partir da sexta-feira 26.
A bagunça não é desse tamanho em países civilizados, que lançaram mão do lockdown para frear a pandemia. No Reino Unido, as políticas rígidas de isolamento social adotadas pelo premiê Boris Johnson — outrora um negacionista como Bolsonaro —, combinadas à vacinação em massa, foram responsáveis pela diminuição de 80% dos casos de Covid-19 no início do ano. Mas, como remédio amargo que é, a medida não foi implantada sem sobressaltos e houve manifestações em Londres contra o aumento das restrições. Apesar disso, o fechamento das atividades e a limitação à circulação de pessoas são amplamente defendidos por infectologistas e epidemiologistas do mundo inteiro como as medidas mais rápidas e eficazes para resgatar o colapsado sistema de saúde e dar algum respiro aos seus profissionais. “O Brasil só se salva hoje fazendo dupla pressão sobre o vírus. De um lado, um lockdown nacional bem orquestrado. Do outro, uma vacinação célere 24 horas por dia”, afirma o infectologista e epidemiologista Bruno Scarpellini, da PUC-Rio. A teoria já foi parcialmente testada aqui, com saldo positivo. O colapso de Manaus no começo do ano gerou medidas de restrição mais duras e a população, amedrontada pelas cenas de terror nos hospitais abarrotados, colaborou. Priorizada pelo programa nacional de imunização, a capital do Amazonas passou a vacinar em um ritmo maior que a média nacional. Como resultado, o número de casos caiu 31% em fevereiro e o de mortes, 55,7%.
Bolsonaro em relação ao lockdown
Para se ter uma ideia da dificuldade em mudar o discurso do bolsonarismo em relação ao lockdown, na mesma hora em que o presidente tentava dar credibilidade ao novo personagem conciliador junto aos demais poderes, os seus filhos Eduardo e Carlos Bolsonaro iam às redes sociais para atacar governadores por causa das medidas de distanciamento social. A solução, esboçada na reunião da última quarta, é que o novo comitê avance nos pontos sobre os quais há mais facilidade de entendimento ou nenhuma divergência, como a vacinação em massa, a compra de insumos necessários, a ampliação da oferta de leitos de UTI e a adoção de um discurso único de reconhecimento da gravidade do momento. Como não há conciliação sobre lockdown, manteve-se o entendimento do STF de que cada governador e prefeito têm autonomia para baixar as medidas restritivas.
O presidente, que no fim do ano passado chegou a comemorar o “finalzinho” da pandemia, ouviu duas cobranças duras no encontro e, conforme relato feito a VEJA, aceitou ambas. A primeira delas é que as decisões do Ministério da Saúde sejam pautadas única e exclusivamente pela ciência e pela medicina, e não por conveniências políticas. A segunda foi endereçada ao chanceler Ernesto Araújo, presente ao encontro e um dos principais negacionistas do governo. Pacheco e Lira exortaram o ministro a negociar imediatamente com países que são fornecedores de vacinas e insumos para a produção de imunizantes em território nacional. Enfatizaram que esse trabalho é “para ontem”.
Com a urgência das mortes se acumulando no país, o tempo dado a Bolsonaro será curto, como mostrou o próprio Lira ao comandar a sessão da Câmara algumas horas depois do encontro e dizer que estava “apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar”, em recado que pareceu endereçado ao governo. “Os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais. Preferimos que as atuais anomalias se curem por si mesmas, frutos da autocrítica, do instinto de sobrevivência, da sabedoria, da inteligência emocional e da capacidade política”, disse.
No segundo tempo da luta contra a pandemia, Bolsonaro tem, enfim, a chance de não errar como errou ao criar dificuldades contra a vacina. Como a situação atual mostra, cada vacilo no combate ao vírus representa mais tempo de sofrimento, mais mortes e mais deterioração econômica e social ao país. A hora é de enxergar o óbvio: é preciso consolidar o entendimento, organizar o esforço coletivo e implantar medidas baseadas na razão.
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731