O presidente Jair Bolsonaro sabia exatamente qual era a pauta da manifestação e tinha plena consciência do mal-estar que a presença dele naquele ambiente causaria, especialmente entre os militares. Mas, como diz um de seus assessores mais próximos, ele é incontrolável. Depois do barulho provocado pela patacoada que gerou reações contundentes e o repúdio de vários setores da sociedade, foi o silêncio das Forças Armadas que chamou atenção. O primeiro e único pronunciamento oficial demorou mais de 24 horas para surgir. Em uma nota lacônica, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, disse que “as Forças Armadas trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal”. Apesar de conter uma aparente obviedade, a mensagem tinha objetivos e destinatários certos.
Um importante oficial, sob a condição de anonimato, contou a VEJA que os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica se mostraram constrangidos e preocupados diante do clima de interação entre Bolsonaro e os manifestantes que pediam a volta da ditadura. O constrangimento se deu principalmente pela simbologia que o ato agregou: ocorreu na data em que se comemorava o Dia do Exército e em frente ao Quartel-General, o que transmitia a ideia de que a pregação golpista contava com o apoio das Forças Armadas. Já a preocupação se devia a eventuais desdobramentos que eventos desse tipo podem provocar. Os militares de patentes mais altas temem que a radicalização política chegue aos quartéis. “Ao se comportar assim, o presidente faz o uso inadequado da marca Forças Armadas. Levamos mais de trinta anos para nos livrar de determinados estigmas. Os militares não podem se imiscuir na política, ponto-final”, diz o oficial.
Num primeiro instante, apesar do constrangimento e da preocupação, a cúpula decidiu que não se pronunciaria a respeito da manifestação. “Mas a pressão vinda de todos os setores da sociedade foi muito grande”, narra o mesmo oficial. O silêncio, avaliaram logo depois, estava sendo interpretado como um aval a tudo o que havia acontecido. Na segunda-feira, os comandantes das três forças e o ministro da Defesa reuniram-se para definir qual seria a resposta mais adequada — qualquer palavra mal colocada poderia detonar uma crise. Era preciso deixar claro que os militares não apoiavam a pregação golpista e ao mesmo tempo modular o pronunciamento para não parecer que estavam desautorizando o presidente. Foi quando resolveram incluir no texto uma segunda obviedade. A nota do Ministério da Defesa, além de evidenciar a obediência à Constituição, o que respondia aos manifestantes, destacou que “o momento que se apresenta exige entendimento e esforço de todos os brasileiros”. Era mais um recado cifrado.
Antes de divulgar o comunicado, o ministro Fernando Azevedo foi consultado por uma autoridade do Judiciário sobre qual seria o posicionamento das Forças Armadas diante do que foi considerado uma provocação de Bolsonaro às demais instituições. O general, conhecido pela serenidade, minimizou o episódio, afirmou que não havia nenhum risco de ruptura, mas também ressaltou que entendia as críticas do presidente, uma vez que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso estavam tomando decisões que mitigam as atribuições de Bolsonaro e ameaçam a permanência dele no poder. Essa observação de Fernando Azevedo chegou ao conhecimento do ministro Dias Toffoli, presidente do STF, do deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara, e do senador Davi Alcolumbre, presidente do Senado. Combinada com o trecho da nota que pedia “o entendimento e esforço de todos”, a mensagem dos militares não poderia ser mais clara. Bolsonaro, por sua vez, foi informado do conteúdo do comunicado oficial antes de sua divulgação. Não por coincidência, na porta do Alvorada, ele repreendeu um apoiador que pedia o fechamento do Congresso.
VEJA procurou os comandantes do Exército, Edson Pujol, da Marinha, Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, Antonio Carlos Bermudez, para que comentassem a participação do presidente Bolsonaro no ato pró-ditadura e avaliassem as ameaças de ruptura democrática. Todos argumentaram que questões de ordem política são respondidas pelo Ministério da Defesa. Por nota, o ministro Fernando Azevedo disse que “não cabe ao ministro comentar comportamentos do presidente da República”. No entanto, ele ressalta que “em nenhum momento, o presidente Jair Bolsonaro defendeu intervenção militar ou AI-5”. O general também acrescentou que todas as instituições estão funcionando perfeitamente. “O país vive uma democracia plena. O próprio presidente tem defendido a democracia e a liberdade de imprensa, como no seu pronunciamento na porta do Palácio da Alvorada na última segunda-feira”, salientou o ministro. Ex-capitão do Exército, o presidente colocou militares de alta patente em postos-chave do governo. Só no Palácio do Planalto quatro generais ocupam cargos de primeiro escalão. Apesar das divergências internas, eles concordam que a ida à manifestação foi uma tremenda bobagem. Mas também acham que o Congresso e o STF não deveriam buscar o confronto com o presidente.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684