Negócios à parte
Documento do MP obtido por VEJA envolve Flávio Bolsonaro em transações suspeitas com imóveis, funcionários-fantasma e lavagem de dinheiro
Paralelamente à carreira política, o senador Flávio Bolsonaro é um homem de negócios. A quem levanta dúvidas sobre de onde tira recursos para manter o padrão de vida, ele sempre cita a franquia que possui de uma rede de lojas de chocolate localizada em um shopping center carioca. Um documento do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro revelado por VEJA na quarta-feira 15 agrega outro ramo em que Flávio fez vasto uso de seu tino comercial: o imobiliário. Entre 2008 e 2017, quando era deputado estadual na Assembleia Legislativa fluminense, a Alerj, o hoje senador comprou (a preços abaixo dos de mercado) e vendeu (a preços acima da média) imóveis, em transações altamente suspeitas de servir de disfarce para lavagem de dinheiro. Nesse comércio de dezenove salas e apartamentos, a imobiliária Bolsonaro lucrou mais de 3 milhões de reais. Tal fato é um dos alicerces do pedido encaminhado pelo MP — e aceito pela Justiça — de quebra de sigilo bancário do senador. Não é o único, porém. Da lista de justificativas para a devassa fazem parte evidências de desvio de dinheiro e bens de terceiros por agentes públicos, o que constitui peculato, e de formação de organização criminosa, ambos delitos tipificados pela contratação de funcionários que nunca aparecem para trabalhar, com o objetivo de que outros embolsem seus salários.
O documento do MP é pródigo em detalhes sobre essa folha de pagamento de ectoplasmas (uns já revelados anteriormente). Uma das funcionárias sobre as quais se estende é Nathalia, a filha mais velha de Fabrício Queiroz, assessor de plena confiança do então deputado estadual, exonerado em outubro de 2018. Nomeada em 2007, aos 18 anos, para o gabinete do vice-líder do PP, função à época exercida pelo deputado Flávio, a jovem, em tese, esfalfava-se entre o trabalho e a faculdade de educação física, situada a quase 40 quilômetros de distância. Depois de formada, passou a bater ponto em uma academia e a atuar como personal trainer — sem ter se desligado da folha de pagamento da Alerj. O MP vê aí indícios de que sua nomeação foi apenas para permitir que o pai “desviasse ainda mais recursos do orçamento destinado ao pagamento dos servidores”. Outras seis pessoas ligadas a Queiroz estão na lista do MP: sua mulher, ex-mulher, a filha caçula, uma enteada, um sobrinho e um ex-marido da mulher. Nathalia mereceu mais espaço porque o caso dela foi usado como exemplo da operação de desvio.
No Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, um banco de dados oficial, os promotores descobriram outros funcionários do gabinete com dupla jornada e anexaram a documentação específica a cada caso (veja trechos na pág. 48). Um dos nomes destacados, Patrícia da Silva Filipe, tinha não só um, mas dois empregos com carteira assinada além da Alerj, em uma empresa de segurança e em um condomínio. Outro, o tenente-coronel Wellington Romano da Silva, requisitado pelo gabinete à Polícia Militar, prestou serviço à vice-liderança do PP por pouco mais de um ano e, no período, passou 226 dias no exterior. Segundo o MP, dezenas de funcionários e assessores de Flávio Bolsonaro faziam parte de uma “organização criminosa com alto grau de permanência e estabilidade”, empenhada em dar um destino particular aos recursos públicos que são pagos aos servidores da Assembleia.
A suspeita da existência de funcionários-fantasma no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj veio à tona no ano passado, depois de sua eleição, mas antes da posse no Senado. O fio da meada foi a detecção, pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), de movimentações bancárias atípicas por parte de diversos servidores da Alerj, entre os quais Fabrício Queiroz. A medida cautelar que gerou a quebra do sigilo do senador, de Queiroz e de mais 93 pessoas e empresas (nem a mulher do parlamentar escapou) esmiúça evidências do modus operandi no gabinete. Alguns dos fantasmas não viam a cor do salário, que era repassado na totalidade para a conta de Queiroz — aquela que, em treze meses, movimentou 1,2 milhão de reais sem procedência comprovada. Outros guardavam uma parcela para si.
O documento obtido por VEJA mostra que o entra e sai de dinheiro de funcionários na conta de Queiroz é uma espécie de eixo do esquema de peculato. O próprio ex-assessor, sumido desde dezembro, chegou a admitir em petição encaminhada ao MP que, de fato, recolhia parte do salário de alguns funcionários para redistribuir informalmente a quantia entre outros auxiliares que não identificou. Mas, feitas as contas, os promotores constataram que, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, ele recebeu 81 791 reais de salários da Alerj e pagou despesas pessoais no valor total de 101 528 reais. Ou seja: embolsou uns 20 000 reais em proveito próprio. O advogado de Queiroz, Paulo Klein, refuta a acusação, ressalta que o MP não apresentou provas e que não cabe ao suspeito comprovar sua inocência. Por escrito, Queiroz afirmou aos promotores ser o único responsável pelo recolhimento e pela distribuição das quantias depositadas, mas eles acham inadmissível que um subalterno tenha “agido sem conhecimento de seus superiores hierárquicos durante tantos anos”. Klein decidiu impetrar um habeas-corpus para tentar sustar a quebra de sigilo e paralisar as investigações, que considera ilegais.
No caso dos lucrativos negócios imobiliários, Flávio Bolsonaro, ao que tudo indica, atuou sozinho. Como VEJA adiantou em seu site, as investigações do MP sobre as Declarações de Operações Imobiliárias arquivadas na Receita Federal e registros em cartórios mostraram que, nos nove anos citados, o primogênito do clã Bolsonaro comprou os dezenove imóveis no Rio de Janeiro, entre salas e apartamentos, gastando menos de 10 milhões de reais, um prodígio. Ato contínuo, vendeu o patrimônio e obteve o tal lucro de 3 milhões, um fenômeno. As duas transações mais bem-sucedidas se deram em Copacabana, na Zona Sul do Rio, em novembro de 2012. Segundo os registros oficiais, um apartamento adquirido por 140 000 foi passado adiante por 550 000; e o outro, que custara 170 000, foi vendido por 573 000. Flávio, na versão corretor, lucrou entre 240% e 290%, em um período no qual o índice de valorização de imóveis na região oscilava entre 9% e 11%.
Em outro negócio da China, o filho mais velho do presidente tornou-se proprietário, entre dezembro de 2008 e setembro de 2010, de doze salas comerciais na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, pagando um total de 2,6 milhões de reais. Um mês depois de concluída a compra, todas as salas foram vendidas para a empresa MCA Exportação e Participações, por quase 3,2 milhões. Os promotores ressaltam que a MCA tem entre seus sócios a Listel S.A., sediada no Panamá, um paraíso fiscal. De acordo com o documento, o Coaf enxerga “sérios indícios” de lavagem de dinheiro em operações imobiliárias que envolvam “pessoas jurídicas cujos sócios mantenham domicílio em países com tributação favorecida”. Em nota encaminhada a VEJA, Flávio Bolsonaro diz que “os valores informados são absolutamente falsos e não chegam nem perto dos valores reais”. Também garante: “Tenho meu passado limpo e jamais cometi qualquer irregularidade em minha vida”. Tudo bem, então — quem não deve não teme.
Publicado em VEJA de 22 de maio de 2019, edição nº 2635
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