Mensalão: processos se arrastam no DF, MG, SP, RJ e ES
A maioria dos mensaleiros, bem como dezenas de personagens que ficaram de fora do julgamento no Supremo, tem outras contas para acertar com a Justiça: pelo menos 46 ações penais e civis
A condenação de 25 réus do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal em 2012 foi um acerto de contas histórico, mas não encerrou o caso. Como já lembrou o procurador-geral Roberto Gurgel, o escândalo é “muito mais amplo” que a ação penal 470. O maior julgamento da história do STF desde a redemocratização cuidou do eixo central das falcatruas (desvio de dinheiro público para a compra de apoio político) e de seus personagens principais (incluindo o chefe da quadrilha, o ex-ministro José Dirceu). Mas a maioria dos mensaleiros, bem como dezenas de personagens que ficaram de fora do julgamento no Supremo, tem outras contas para acertar com a Justiça: pelo menos 46 ações penais e civis em Minas Gerais, Distrito Federal, São Paulo, Rio e Janeiro e Espírito Santo, envolvendo 154 pessoas, além de empresas. Tantos processos são o resultado de um esforço investigativo monumental, que remonta à revelação, por VEJA, das traficâncias de um apaniguado do PTB nos Correios, flagrado em vídeo embolsando 3 mil reais a título de propina. Até agora apenas sete ações foram julgadas – tudo ainda na primeira instância. Outras sete estão prontas para ir a julgamento.
Os processos se ligam a tramas diversas. A primeira delas se passou em Minas Gerais, em 1998, e consistiu, segundo a denúncia do Ministério Público, no desvio de recursos de estatais, por meio das empresas de Marcos Valério, para a campanha pela reeleição do então governador tucano Eduardo Azeredo. Com a derrota de Azeredo, o publicitário passou a mirar o governo federal e se aproximou do PT: “Do financiamento de campanha (…), Valério e seu grupo evoluíram, em conluio com José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno, Sílvio Pereira e outros, para a compra de apoio político de parlamentares”, resumiu o MP. A farra vigorou até a delação de um de seus beneficiários, o então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), acuado pela revelação de um esquema complementar de corrupção no feudo petebista dos Correios, cujo loteamento também serviu de moeda de troca para garantir apoio ao governo federal.
A devassa nos Correios – A roubalheira nas estatais começou a ser investigada em junho de 2005 e se desdobrou em diversas ações nas esferas penal e civil. A principal linha de investigação resultou em pelo menos três ações penais. São réus: o ex-deputado Roberto Jefferson, o ex-diretor de administração dos Correios Antônio Osório Batista, o ex-chefe do Departamento de Compras e Contratações da estatal Mauricio Marinho (que estrela a videoaula de corrupção) e outros apadrinhados do PTB, funcionários dos Correios, lobistas e empresários espertalhões.
O esquema descrito pelo Ministério Público é bastante simples: uma quadrilha, comandada por Jefferson, tomou conta de diretorias-chave dos Correios com o objetivo de levantar recursos para si próprios e para o partido, em particular no ano eleitoral de 2004. “O grau de organização realmente impressiona”, diz o MP, na denúncia oferecida em 2008. Segundo os procuradores, um dos documentos que baseiam a acusação, recolhido do computador de Marinho, aponta não apenas a taxa da propina como também os impostos que deveriam ser excluídos da base de cálculo e o valor estimado dos desvios. Até agora, ninguém foi julgado. Nesta instância, Jefferson responde por formação de quadrilha (pena de 1 a 3 anos). Como já passaram mais de quatro anos desde o recebimento da denúncia, o caso já terá prescrito em caso de condenação a penas até dois anos.
O valerioduto mineiro – Em dezembro de 2005, o inquérito do mensalão foi desmembrado e deu origem a uma linha de investigação inteiramente devotada à perna mineira do escândalo. É o chamado mensalão mineiro ou tucano – embora, a rigor, não tenha a forma de mensalão, nem se limite a políticos do PSDB. Para o Ministério Público, tratou-se de um laboratório do valerioduto a serviço da campanha pela reeleição de Eduardo Azeredo (ex-presidente do PSDB e atual deputado federal) ao governo de Minas Gerais em 1998, tendo Clésio Andrade (então no PFL, hoje senador pelo PMDB) como vice. Outros réus do caso: o ex-vice de Azeredo e ex-ministro de Lula Walfrido dos Mares Guia (então no PTB, hoje no PSB), o ex-secretário de Azeredo e tesoureiro de campanha Cláudio Mourão, assessores, diretores de estatais, sócios de Valério e, em processo à parte, os executivos do Rural.
O que o valerioduto mineiro tem em comum com o mensalão é evidente: o desvio de recursos públicos por meio das empresas de Marcos Valério, com auxílio providencial do Banco Rural, conforme a denúncia. Segundo o MP, a sangria dos cofres de Minas (estatais Copasa, Comig e Bemge) alcançou 3,5 milhões de reais (o equivalente a 1/3 da soma que Duda Mendonça receberia do valerioduto no exterior, como pagamento pela campanha de Lula). Mas à diferença das traficâncias no Congresso, o caso mineiro não envolveu compra de voto. De acordo com o MP, os desvios tinham por destino o caixa da campanha tucana – que, afinal, fracassou, derrotada por Itamar Franco (PMDB).
O valerioduto mineiro é, portanto, anterior ao mensalão, mas só foi descoberto depois, com a súbita atenção que as empresas de Marcos Valério passaram a atrair. A primeira denúncia foi oferecida em novembro de 2007 e desde então o processo tem sofrido com o vaivém da primeira instância ao Supremo e deste de volta àquela. É que Azeredo, antes como senador, depois como deputado, goza de prerrogativa de foro. Em 2009, atendendo a pedido de Valério e outros réus, o STF desmembrou o caso, manteve o processo de Azeredo e remeteu os demais réus à Justiça de Minas. A interpretação do relator Joaquim Barbosa: não havendo acusação de formação de quadrilha, o processo correria mais rápido dessa forma. Em 2011, Clésio Andrade assumiu uma vaga no Senado e passou a gozar da mesma prerrogativa. Novamente a pedido de Valério, a Justiça mineira devolveu os autos ao STF, que novamente os desmembrou e encaminhou os demais réus à primeira instância.
Assim, Azeredo e Clésio respondem separadamente a ações no Supremo, e os demais aguardam sentença da Justiça de Minas. Até agora ninguém foi julgado. No STF, desde que Joaquim Barbosa assumiu a presidência da Corte, o caso ficou sem relator. O risco de prescrição é considerável, uma vez que os fatos narrados pelo MP são de 1998. Um dos réus em Minas, Mares Guia, já conta com isso. É que o ex-ministro foi acusado de lavagem e peculato, cuja pena máxima (10 e 12 anos, respectivamente) prescreve em 16 anos. Como completou 70 anos em 2012, cabe a redução do prazo à metade, 8 anos, tempo menor que o decorrido entre a desditosa campanha tucana e a abertura do processo em 2010.
Apenas uma das ações relacionadas ao caso mineiro chegou a julgamento. Em setembro de 2012, a Justiça absolveu funcionários do Rural e extinguiu a ação contra a banqueira Kátia Rabello e o ex-vice-presidente do banco José Roberto Salgado por considerar que a acusação de gestão fraudulenta já era objeto da ação que tramitou no Supremo, onde ambos foram condenados. O Ministério Público recorreu, alegando que as investigações foram desmembradas justamente por tratar de fatos distintos.
O caso BMG – Com o Banco Rural, o BMG também serviu como esteio financeiro para as peripécias de Valério e cia, segundo o Ministério Público. “Os dirigentes do Banco BMG injetaram recursos milionários na empreitada delituosa, mediante empréstimos simulados”, diz a denúncia do mensalão. “Entretanto (…), não há elementos para apontar uma atuação estável e permanente com os demais membros da organização criminosa, razão pela qual não estão sendo denunciados pelo crime de quadrilha”. Por isso, ao contrário da cúpula do Rural, a do BMG escapou do processo principal. Mas nove meses após oferecer a denúncia do mensalão ao Supremo, o MP formalizou a acusação contra o BMG, aceita em abril de 2007, tendo como relator o mesmo ministro, Joaquim Barbosa.
O caso BMG também sofreu com vaivém entre instâncias. Em 2011, o processo foi remetido para Minas Gerais, uma vez que o único réu que tinha foro privilegiado, José Genoino, havia perdido a disputa por uma vaga na Câmara. Em outubro de 2012, saiu a sentença em Minas Gerais. À exceção da mulher de Valério, todos os demais réus foram condenados, uns por falsidade ideológica (Genoino, Delúbio Soares, Valério e sócios), outros por gestão fraudulenta (os diretores do BMG, incluindo seu dono, Ricardo Guimarães). Todos puderam recorrer em liberdade. Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, vai defender os dirigentes do banco na segunda instância.
Diz a sentença da Justiça mineira que o BMG praticamente “pagou para emprestar” ao PT e às empresas de Valério. É a tese do MP. Segundo a promotoria, o banco teve um interesse bastante concreto na transação com o lulopetismo: obter “lucros bilionários na operacionalização de empréstimos consignados de servidores públicos, pensionistas e aposentados do INSS”. Estas vantagens, segundo o Ministério Público, também foram objeto de uma ação na esfera civil, em 2011, contra o presidente Luiz Inácio Lula de Silva e seu ex-ministro da Previdência, Amir Lando. Segundo o MP, os dois valeram-se da máquina pública para fazer promoção pessoal e favorecer o banco mineiro. A denúncia refere-se às milhares de cartas enviadas pelo governo para propagandear a novidade do crédito consignado quando apenas o BMG estava habilitado a oferecê-lo. A promotoria exigia a devolução de 10 milhões de reais ao erário, mas a Justiça Federal do DF concluiu ser incabível tal pedido por meio de ação de improbidade pública e, sem o exame de mérito, devolveu a peça ao MP, que poderá reformular a acusação.
Outras tramas do mensalão – A denúncia original do mensalão é um recorte do escândalo. “Foi o que foi possível provar, com elementos razoáveis”, disse Gurgel ao jornal Folha de S.Paulo. “O grande desafio era provar a responsabilidade do chamado núcleo político.” O prosseguimento das investigações deu origem a pelo menos 31 processos. Na mira: Valério, sócios e os executivos do Rural, por crimes contra o sistema financeiro e a ordem tributária; corretoras e doleiros acusados de servir ao esquema de lavagem em São Paulo e Espírito Santo; intermediários dos pagamentos no exterior ao publicitário Duda Mendonça; os mesmos mensaleiros julgados no STF, em ações civis (entre elas, há uma para cada partido: PT, PTB, PP, o antigo PL e o PMDB); Delúbio Soares, por lavagem de dinheiro (no Supremo ele foi condenado por corrupção e formação de quadrilha); o ex-procurador da Fazenda Glênio Sabbad Guedes, no Rio de Janeiro, acusado de receber propina de Valério para interceder em favor dos bancos ligados ao esquema; entre outros casos.
A grande maioria das ações tramita na primeira instância. Uns poucos casos chegaram à sentença. O primeiro deles, em 2010, deu na condenação de Rogério Tolentino a sete anos e quatro meses de prisão por lavagem de dinheiro. Em agosto de 2011, Valério e o sócio Cristiano Paz foram condenados a seis e cinco anos de reclusão por prestarem informações falsas ao Banco Central. Em fevereiro de 2012, Valério, Paz e Ramon Hollerbach foram condenados a nove anos de prisão por sonegação e falsificação de documentos. Em outubro de 2012, dois empresários foram sentenciados a mais de dez anos de prisão por evasão e lavagem. De acordo com a sentença, atuaram na intermediação de remessas ao exterior em benefício de Duda Mendonça (que no Supremo foi absolvido e neste caso não é réu). Em janeiro de 2013, Valério sofreu mais uma condenação penal, desta vez por sonegação. Estas cinco sentenças saíram em Minas, e todos os condenados puderam recorrer em liberdade.
Não está claro que efeitos o julgamento no Supremo terá sobre os demais processos. Um deles é previsível: réus que perderem a primariedade enfrentarão penas mais duras, por maus antecedentes, e perderão benefícios da progressão de regime, do fechado ao semi-aberto ou aberto. Outro: as teses aceitas pelo Supremo para condenar os mensaleiros, como a validade dos indícios apurados na CPI, e mesmo o rigor com que trataram o assalto aos fundamentos da democracia poderão influenciar os demais magistrados. Ao procurar o Ministério Público com novo testemunho sobre a participação de Lula no esquema, em setembro de 2012, Valério deveria saber que um eventual acordo não aliviaria a pena aplicada pelo STF (mais de 40 anos de prisão e multa milionária), mas poderia favorecê-lo nos processos em andamento. Há pelo menos onze ações penais contra Valério em Minas Gerais e uma no Rio, além de processos na esfera civil no Distrito Federal.
A investigação continua – Passados mais de sete anos do escândalo, algumas linhas de investigação continuam abertas e vários dos 118 indiciamentos pedidos pela CPI dos Correios em seu relatório final, de abril de 2006, não prosperaram. Em 2011, a Polícia Federal concluiu o relatório de um inquérito sigiloso desdobrado da investigação original para apurar outras fontes de financiamento do mensalão, bem como outros beneficiários. Cabe agora ao Ministério Público oferecer – ou não – a denúncia. Alguns dos alvos: o pagamento de 98 500 reais à empresa de Freud Godoy, o faz-tudo de Lula; traficâncias envolvendo outras estatais; as relações de Valério com o Grupo Opportunity, de Daniel Dantas; outros lobbies de Valério; e pagamentos suspeitos feitos a dezenas de políticos, assessores, servidores e empresas. Alguns dos nomes citados: o ministro de Dilma Fernando Pimentel (Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior), o ex-ministro de FHC Pimenta da Veiga (Comunicações), o senador Romero Jucá (PMDB-RR), os deputados federais Vicentinho (PT-SP), Benedita da Silva (PT-RJ), José Mentor (PT-SP), Jaqueline Roriz (PMN-DF), João Magalhães (PMDB-MG) e Lincoln Portela (PR-MG), entre outros.