Tanto no lançamento de sua pré-candidatura à Presidência da República como na apresentação das diretrizes de seu eventual governo, Lula lembra muito o candidato que venceu as eleições de 2002 — ponderado, conciliador, democrata e avesso a radicalismos. É esse o Lula que os marqueteiros petistas querem apresentar ao eleitorado: o político capaz de pacificar os mais antagônicos interesses. O problema é que existe um outro Lula, incontido, que tem se revelado em vários momentos nessa pré-campanha, especialmente quando está diante de apoiadores e com um microfone na mão. Esse Lula já deixou clara a animosidade contra determinadas categorias profissionais, como a dos policiais, explicitou o preconceito em relação à classe média, mostrou o rancor que guarda da imprensa, foi corajoso ao expor sua posição em defesa do aborto, pregou o confronto com o Congresso e não esconde de ninguém que, se eleito, pretende reverter alguns importantes avanços econômicos conquistados nos últimos anos. Essa dualidade pode confundir alguns eleitores.
Na última terça-feira, o ex-presidente apresentou uma prévia de seu programa de governo, um condensado de generalidades sobre temas variados. O petista não tocou na questão do aborto, passou longe da anunciada intenção de revogar a reforma trabalhista, esqueceu a obsessão de criar mecanismos de controle da imprensa e ainda fez acenos aos policiais — tudo diferente do que prega ao subir nos palanques Brasil afora. “Em um programa de governo, a gente não pode ser irresponsável em propor coisa que a gente já sabe que não vai executar”, explicou o Lula ponderado, ao lado de seu vice, o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB). Conciliador, o ex-presidente só foi enfático ao afirmar que, se vencer, sua prioridade será combater a fome e melhorar a renda da população. O tom suave em nada se parecia com o de outro pronunciamento que o petista havia realizado quatro dias antes, em Alagoas.
Sobre um palanque, sem um teleprompter para ler os discursos escritos por assessores e diante de uma plateia de aliados em Maceió, Lula, ao que parece, queria mostrar a habilidade de bom negociador conquistada durante os anos de sindicalismo. Ele lembrou que, em 1998, na condição de líder maior do PT, intercedeu em defesa dos interesses dos sequestradores do empresário Abilio Diniz junto ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. “Eles iam entrar em greve seca, que é ficar sem comer e sem beber, e aí é morte certa”, disse. E continuou: “Eu fui na cadeia e falei com os meninos: ‘Vocês vão ter de dar a palavra para mim e garantir que vão acabar com a greve de fome agora, e vocês vão ser soltos’. Eles pararam a greve de fome, foram soltos”. Os tais “meninos” eram cinco chilenos, dois canadenses, dois argentinos e um brasileiro militantes de grupos extremistas da América Latina, treinados para matar. Em 1989, eles mantiveram Diniz por quase uma semana em um cativeiro na periferia de São Paulo, dentro de um caixote, enquanto exigiam 30 milhões de dólares para libertá-lo. “Meninos” bem sapecas.
Programas de governo não são feitos para dar voto, mas podem e por vezes direcionam o discurso de um presidenciável em campanha. No caso do petista, a antecipação da plataforma de governo tem o objetivo de servir como um antídoto para o Lula moderado se proteger do Lula do palanque, que já criticou a classe média por supostamente ostentar “um padrão de vida acima do necessário”, insinuou que policiais, base de sustentação de Jair Bolsonaro, não eram “gente”, defendeu uma ampla demissão de militares do governo e insuflou sindicalistas a entrar na casa de parlamentares para pressioná-los. Antes disso, Lula também relativizou a permanência no poder do ditador nicaraguense Daniel Ortega, notório perseguidor de adversários políticos. O próprio PT já havia cometido o mesmo ato falho. Em nota, o partido saudou a vitória do ex-guerrilheiro numa eleição fraudada, segundo observadores internacionais, como “uma manifestação popular e democrática”. Definitivamente, a defesa de um ditador sanguinário não combina com o perfil de um democrata radical. Foi para esclarecer essa contradição que o programa de governo destacou como ponto principal a “ampla defesa da democracia”.
Tema caro ao setor sindical, esteio de apoio ao petista desde o início da carreira política, a reforma trabalhista é um dos alvos preferenciais do ex-presidente desde o início da pré-campanha. “A mentalidade de quem fez a reforma trabalhista é a mentalidade escravocrata, de quem acha que sindicato não tem de ter força, não tem representatividade”, disse em certa ocasião o petista. A declaração foi interpretada como uma senha de que, se eleito, ele pretende revogar a reforma, o que, num primeiro momento, repercutiu mal e fragilizou o apoio que o presidenciável vinha recebendo de alguns setores empresariais. O programa de diretrizes esclareceu a dúvida. Lula, na verdade, pretende apenas revisar pontualmente “os marcos regressivos” da atual legislação. “Estava uma loucura o que Lula vinha falando em público. Ele soltava nos discursos coisas que não tinham nada a ver e vários setores começaram a fazer muita cobrança por moderação”, disse a VEJA o deputado Paulo Pereira da Silva (Solidariedade-SP), o Paulinho da Força.
Mas afinal qual é o Lula verdadeiro? “O Lula real é aquele mais espontâneo que de vez em quando fala besteira no palanque, mas agora ele está se vigiando”, acrescenta Paulinho. A reaproximação entre os dois, aliás, é um sintoma do movimento que busca moldar o ex-presidente ao figurino de conciliador. O sindicalista foi um apoiador convicto do impeachment de Dilma Rousseff e, no dia anterior à votação que selou o destino da petista, cantarolou da tribuna da Câmara: “Dilma vá embora que o Brasil não quer você. Leve o Lula junto e os vagabundos do PT”. Seis anos depois do episódio, o parlamentar estava na mesa das autoridades convidadas para a cerimônia de lançamento das diretrizes do programa. Em ambientes controlados, como o que lançou o plano de governo, há poucos espaços para deslizes retóricos. Mas nem tudo saiu como planejado. Contrariado por não ter sido sequer avisado do evento, o ex-senador Eduardo Suplicy caminhou até a mesa das autoridades, interrompeu a solenidade e passou uma descompostura nos companheiros pelo fato de não ter sido ouvido e nem convidado. Lula, seguindo o script, não reagiu, se limitou a baixar a cabeça, mas deixou escapar um leve sorriso, sarcástico, que revelou todo o histórico desprezo que cultiva pelo colega de partido. Naquele momento, o candidato e o avatar se uniram no mesmo personagem.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795