Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Governo Bolsonaro faz aposta eleitoreira na mistura de política e religião

A defesa dos interesses da Universal em Angola — uma violação à Constituição — é o exemplo mais recente da aproximação Igreja-Estado no Brasil

Por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , João Pedroso de Campos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h21 - Publicado em 23 jul 2021, 06h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Uma das grandes conquistas no desenvolvimento do mundo ocidental, a separação entre Igreja e Estado é de uma engenhosidade sofisticada por preservar ao mesmo tempo as duas instituições: garante a liberdade religiosa e evita que um credo tenha privilégios públicos. No Brasil, essa barreira foi erguida a partir da Proclamação da República e a posição acabou sendo ratificada por todas as constituintes a partir de 1891. Em mais um dos muitos retrocessos promovidos na era Bolsonaro, ocorre agora no país um perigoso ataque a esse muro civilizatório. Nenhum outro presidente misturou tanto religião e Estado quanto o atual — algo, aliás, expressamente proibido pela Carta Magna. No exemplo mais recente da confusão, em meio à conferência de chefes de Estado de países de língua portuguesa, em Angola, o vice-presidente Hamilton Mourão gerou desconforto ao tratar na missão paga pelos cofres públicos brasileiros de assuntos particulares da Igreja Universal. Sob pressão de sua base política-evan­gélica, Bolsonaro pautou-o para tentar interceder na crise que tirou da instituição criada pelo bispo Edir Macedo o controle de centenas de templos naquela nação africana.

    Tal pecado diplomático ficou claro diante da firme posição de Angola de não misturar as coisas. O presidente do país, João Lourenço, sempre tentou manter distância do problema da Universal por entender que não é uma questão de Estado. Ele nunca se pronunciou publicamente sobre o caso, que hoje é investigado pela PGR de lá por denúncias de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e discriminação racial. “Trata-se de uma igreja e não de uma empresa multinacional na qual o Estado brasileiro tenha algum interesse”, disse a VEJA o pastor Jimi Inácio, porta-voz da dissidência local que hoje comanda os mais de 200 templos da Universal no país e é reconhecida pelas autoridades locais. Angola foi o primeiro país da África onde a igreja fincou bandeira, em 1992, mas na África do Sul ela tem mais templos, cerca de 300. Não à toa, Bolsonaro indicou o ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, para a embaixada do país mais desenvolvido do continente. A decisão — mais uma em que o presidente coloca os interesses da igreja acima dos da nação — ainda precisa ser aprovada pelo Senado.

    LEIA TAMBÉM: Pastor da Universal de Angola: “Não tem conversa, não somos uma empresa”

    MISSÃO - Mendonça, rumo ao STF: a despeito do ótimo currículo, pesou mais o fato de ser “terrivelmente evangélico” -
    MISSÃO - Mendonça, rumo ao STF: a despeito do ótimo currículo, pesou mais o fato de ser “terrivelmente evangélico” – (Reprodução/Instagram)

    O espírito por trás da desastrada ação do vice-presidente em Angola faz parte de uma política de um governo que adotou desde a posse o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Essa enorme e perigosa confusão entre Igreja e Estado é visível em várias frentes da gestão Bolsonaro. Outro exemplo recente é a escolha de um ministro “terrivelmente evangélico” ao Supremo Tribunal Federal. Ela acaba de ser concretizada, com a indicação do nome do advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça André Mendonça. Mas, como se sabe, o que pesou mesmo na decisão foi o título de pastor presbiteriano (algo que desmerece o próprio Mendonça, dono de um ótimo currículo para o cargo). O primeiro escalão do presidente tem ainda pastores na Educação (Milton Ribeiro, presbiteriano, como Mendonça), e na pasta que trata de Mulher, Família e Direitos Humanos, com Damares Alves, que já ministrou cultos na Igreja do Evangelho Quadrangular e na Igreja Batista da Lagoinha. Em poucos meses no cargo, em uma única entrevista, Ribeiro foi capaz de associar a homossexualidade a “famílias desajustadas” e educação sexual em escolas a “erotização das crianças”. No ano passado, assessores de Damares foram enviados ao Espírito Santo para acompanhar de perto o caso de uma menina capixaba de 10 anos que ficou grávida após ter sido estuprada por um tio. A presença deles ali foi interpretada como uma forma de pressão de Damares para evitar a realização de um aborto legal (algo que a ministra nega). “Em governos anteriores, se um presidente se dizia cristão, isso interferia na política dele relativamente pouco”, diz Renato Janine Ribeiro, ministro da Educação no governo Dilma Rousseff e recém-­eleito presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

    CRUZADA - Damares: pregação radical contra a legalização do aborto -
    CRUZADA - Damares: pregação radical contra a legalização do aborto – (Cristiano Mariz/VEJA)
    Continua após a publicidade

    Agora, a ingerência é constante. A imposição de determinadas agendas ou de uma visão de mundo de acordo com a fé é nítida, com prejuízos ao país em diferentes níveis. Entre outras coisas, impede discussões racionais sobre temas como aborto e drogas (questões que deveriam ser tratas apenas no âmbito das políticas de saúde) e respinga até em temas como a possível legalização de cassinos (hipótese demonizada pelos evangélicos). Não raro, as instituições precisam reagir duramente para conter as tentativas de interferência religiosa. Durante a pandemia, já em sinal de alinhamento estreito com o Palácio do Planato, Mendonça, à frente da AGU, defendeu no STF a reabertura de templos religiosos citando três trechos da Bíblia. Perdeu a ação e acabou sendo ironizado por Gilmar Mendes: “Parece ter vindo de Marte”, disse o ministro. Na verdade, em sua recente campanha pela indicação ao STF, Mendonça deixou claro que deseja estar mesmo mais próximo do Reino dos Céus. Segundo a pregação neopentecostal, o movimento de elevação deve começar a ser implementado no tempo presente. Em fevereiro, em visita à gigantesca Assembleia de Deus Ministério do Belém, em São Paulo, ele seguiu o preceito, discursando no púlpito que “se tem um cargo que é importante, é o de ministro do Evangelho”.

    + Mendonça ganha apoio na comunidade judaica ao STF

    arte evangélicos

    Não foi por acaso o movimento de indicação ao STF de um ministro com o perfil dele. Com a ascensão evangélica entre a população brasileira nas últimas décadas (projeções indicam que esse segmento deverá ultrapassar o dos católicos até 2032), as lideranças dessa corrente, sobretudo entre as poderosas neopentecostais, passaram a ser recebidas com frequência no Palácio do Planalto, o que aconteceu nos governos de FHC, Lula, Dilma e Temer. Bolsonaro, no entanto, alçou-os ao posto de conselheiros. Eles dão palpites sobre diversas áreas da República, da economia à saúde. “O presidente incorpora boa parte dos fundamentos que estruturam a ação dos grupos evangélicos, como tratar meios de comunicação como nocivos ou o negacionismo científico”, afirma o cientista político Luís Gustavo Teixeira da Silva, professor da Universidade Federal de Pelotas e estudioso da laicidade do Estado. Curiosamente, essa forte ligação atual de Bolsonaro com o mundo evangélico não é muito antiga. Em 2016, ele foi batizado nas águas do Rio Jordão, em Israel, por Everaldo Pereira (no ano passado, o pastor e deputado foi preso sob a suspeita de ser um dos líderes de esquemas de corrupção durante o governo de Wilson Witzel). Desde a conversão, o presidente vem aprofundando o proselitismo. Há dois anos, tornou-se o primeiro mandatário da nação a ir a uma Marcha para Jesus, onde foi apresentado como “homem de Deus”. E, nos últimos meses, em que viu a sua popularidade cair, intensificou a agenda em cultos e missas — que passaram a ser até transmitidos ao vivo pela TV pública.

    Continua após a publicidade

    A comutação de Bolsonaro acompanha o fenômeno da multiplicação evangélica no país e o consequente crescimento da representação política dessa fé no Congresso. A bancada evangélica passou de 27 deputados na eleição de 1994 a 85 em 2018. Oficialmente, a Frente Parlamentar Evangélica ainda tem a assinatura de 195 deputados — além dos evangélicos, a turma inclui católicos e simpatizantes. Essa representação possibilitou barrar propostas que já avançaram há tempos em outros países, como a descriminalização do aborto, fora o excesso de energia gasto em reuniões e comissões só para discutir questões como banheiros unissex nas escolas. Parlamentares do grupo também têm como prioridades conseguir concessões de rádio, liberação de alvarás de templo, perdão de dívidas milionárias e isenção fiscal. “O ingresso maciço de evangélicos na política decorreu de uma instrumentalização mútua: as igrejas tentando instrumentalizar a política, partidos e Estado em interesse próprio, enquanto partidos, candidatos e governantes passaram a demandar apoio das bancadas evangélicas e dos pastores no período eleitoral”, diz o sociólogo Ricardo Mariano, professor da USP e autor do livro Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil.

    Hoje, com muito mais penetração do que os católicos na classe mais pobre da sociedade, em que muitas vezes o Estado não está presente, as igrejas evangélicas ainda desempenham um papel importante no conforto espiritual e até mesmo material dos moradores dessas comunidades. “O político que não entender a força que a igreja tem e quanto ela ajuda a sociedade com certeza sairá perdendo na eleição e já nasce morto na campanha”, diz o pastor Luciano Luna, que é coordenador de assuntos religiosos do PSDB-­SP e já participou de mais de seis campanhas fazendo o meio de campo entre políticos e líderes religiosos. Funções como a de Luna passaram a ser regra dentro dos partidos políticos, da esquerda à direita. Exemplos não faltam: o ex-presidente Lula (PT) estuda preparar uma “carta aos evangélicos” no mesmo molde da célebre Carta ao Povo Brasileiro, de 2002; o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) lançou vídeos comparando a Bíblia à Constituição; e o governador João Doria (PSDB) já planeja visitar os templos assim que terminar as prévias do PSDB para definir o candidato do partido à disputa presidencial de 2022. Para o cientista político Claudio Couto, da Fundação Getulio Vargas, o voto evangélico é mais importante que o de outras religiões, como a católica, porque os fiéis se comportam como irmãos na fé também ao votar: “Muitos evangélicos não o são apenas no dia de culto e nas condutas, mas também nas dimensões que na sociedade são externas à religião, como a política”.

    À DIREITA - Edir Macedo e Bolsonaro: a conversão à fé ocorreu em 2016, em batismo feito por Everaldo Pereira -
    À DIREITA - Edir Macedo e Bolsonaro: a conversão à fé ocorreu em 2016, em batismo feito por Everaldo Pereira – (Alan Santos/PR)

    Esse tipo de participação, evidentemente, é legítimo, mas vira um problema quando se transforma em um poder que passa a influenciar as instituições. Em sociedades abertas e modernas, questões de foro íntimo, a exemplo da religião, não devem balizar o debate político e muito menos as políticas públicas, como ocorre no Brasil da atualidade. “Quando se pretende impor um tipo de concepção específica, se acaba por reduzir a liberdade das pessoas e a limitar o pluralismo dessa sociedade”, diz Couto, da FGV. Considerado o pregador mais influente dos Estados Unidos, o pastor Billy Graham sintetizou os riscos de misturar Igreja com Estado em circunstâncias como a que enfrentamos hoje por aqui. “Me incomodaria que houvesse casamento entre o fundamentalismo religioso e a direita política. A extrema direita não tem interesse na religião, exceto para manipulá-la”, disse Graham em 1981.

    Continua após a publicidade
    **ATENÇÃO**NÃO REUTILIZAR ESTA IMAGEM, SUJEITO A COBRANÇA POR USO INDEVIDO**FOTO EXCLUSIVA PARA A UTILIZAÇÃO APENAS NA REVISTA VEJA**
    À ESQUERDA - Lula com o líder da Universal: voto evangélico tornou-se fundamental para todas as vertentes políticas – (Bruno Miranda/Folhapress/.)

    Em sociedades completamente laicas, questões privadas como a sexualidade também não deveriam pautar o debate político. Em um ambiente contaminado pelo extremismo, no entanto, políticos como o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), pré-candidato à Presidência que se declarou gay em uma entrevista recente, podem trazer o assunto à baila até como modo de evitar ataques futuros. “Se vai ter algum tipo de consequência política, é difícil dizer. O timing para a declaração dele foi propício, mas o eleitorado brasileiro também é muito conservador, sobretudo do campo do Eduardo Leite, e pode ser que o saldo seja negativo”, afirma Gustavo Gomes da Costa, professor de sociologia da UFPE e pesquisador da participação LGBT na política institucional.

    LEIA TAMBÉM: Presidenciáveis, Rodrigo Pacheco e Eduardo Leite se aproximam

    EXTREMISMO - Guerreiros no Afeganistão: o risco das sociedades baseadas em textos religiosos -
    EXTREMISMO - Guerreiros no Afeganistão: o risco das sociedades baseadas em textos religiosos – (Saeed Khan/AFP)
    Continua após a publicidade

    No Brasil, ironicamente, a laicidade do Estado foi amplamente defendida pelo segmento evangélico na época da Constituinte — isso porque se temia que o catolicismo voltasse a ser considerado religião oficial do país. Apesar de o Brasil ainda estar distante de regimes teocráticos, como os do Irã e Afeganistão, onde os cristãos evangélicos chegam a ser perseguidos, é importante permanecer vigilante sobre qualquer ameaça de fusão entre estado e religião. “A separação entre Igreja e Estado garante que pessoas muito diferentes possam conviver bem socialmente. A democracia exige a laicidade do Estado”, diz Renato Janine Ribeiro. A pastora luterana Romi Bencke, que junto com outras lideranças religiosas assinou um pedido de impeachment contra o presidente neste ano, entende que a atitude de Bolsonaro agravou um problema já existente. “Na minha opinião, a ideia democrática de laicidade não foi compreendida no país. Basta ver que algumas políticas, principalmente as reivindicadas pelos movimentos de mulheres, sempre foram medidas com a régua religiosa doutrinária dogmática, o que não deveria acontecer”, observa a pastora.

    + Bolsonaro virou Crivella

    A influência protestante no mundo político não é nenhuma novidade no mundo. E ela foi fundamental em momentos-chave da história, como no movimento abolicionista da Inglaterra e na campanha dos direitos civis nos Estados Unidos liderada pelo pastor batista Martin Luther King. Na Alemanha, um dos países que mais leva a sério a laicização do Estado, a premiê Angela Merkel pertence ao partido União Democrata Cristã. O perigo, no entanto, se manifesta quando a fé passa a ser manipulada pelos políticos de acordo com os seus interesses, seja para criar inimigos a ser eliminados (o mal) ou para blindar de críticas os seus representantes tidos como ungidos divinos. Aliás, o termo “fundamentalismo”, que é usado para definir as teocracias islâmicas da atualidade, nasceu de um grupo de protestantes americanos do começo do século XX, que pregava uma sociedade baseada nas regras bíblicas contra a ameaça “modernista” e tinha como base o livro intitulado The Fundamentals. Felizmente, o Brasil encontra-se longe das teocracias, mas os casos extremos mostram o risco de se aprofundar a mistura de religião com Estado. O país não precisa de ministros terrivelmente evangélicos — precisa, sim, de homens públicos eficientes, honestos e de bom senso, independentemente de sua fé.

    Com reportagem de Caíque Alencar

    Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Semana Black Friday

    A melhor notícia da Black Friday

    BLACK
    FRIDAY

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    Apenas 5,99/mês*

    ou
    BLACK
    FRIDAY
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

    a partir de 35,60/mês

    ou

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.