Quatro anos depois de uma campanha municipal feita sob o espectro da pandemia, as máquinas partidárias começam a se movimentar a partir desta semana para uma eleição que promete ser intensa e nos moldes das antigas disputas. Com o início das convenções, no sábado 20, será dado o pontapé inicial na corrida para emplacar o maior número de prefeitos e vereadores e construir uma base política fortalecida para ajudar a vencer o jogo bruto que se desenha para a contenda nacional de 2026. O retrato da largada permite ver duas fortes tendências, ambas conservadoras: a opção pela reeleição dos atuais prefeitos e a preferência por legendas do centro à direita no espectro político. E sinaliza uma dúvida: o quanto os principais cabos eleitorais do país, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Jair Bolsonaro, poderão influenciar o resultado das urnas.
A fotografia da largada mostra que quem está na cadeira dificilmente sairá dela. Em um cenário no qual vinte dos 26 prefeitos de capitais disputam um novo mandato, a maioria (onze) está em vantagem na corrida, segundo as pesquisas eleitorais. Outros seis, embora não estejam liderando, estão em posição competitiva. Alguns deles têm a preferência de ampla parcela do eleitorado, o que indica uma tendência a levar a disputa ainda no primeiro turno, como os prefeitos do Recife, João Campos (PSB), que cravou 75% das intenções de voto no último Datafolha, e Bruno Reis (União Brasil), de Salvador, que pontuou quase 68% no Paraná Pesquisas. Eduardo Paes (PSD), do Rio de Janeiro, e João Henrique Caldas (PL), de Maceió, também estão entre os que largam como favoritos porque têm cerca de 40 pontos à frente de seus perseguidores mais próximos (veja os números).
Nos últimos anos, as eleições para prefeito assumiram quase que um caráter plebiscitário, em que a questão basicamente é decidida entre as opções de manter ou trocar o prefeito. Nas duas últimas disputas (2016 e 2020), quase 80% dos gestores de capitais foram reconduzidos ao cargo. Um dos motivos, claro, é a avaliação de seus governos. No caso de João Campos, o maior favorito entre os candidatos das grandes cidades, a sua gestão, segundo o Datafolha, é considerada ótima ou boa por 69% dos entrevistados, enquanto 24% a avaliam como regular e apenas 6% a classificam como ruim ou péssima. Os investimentos em zeladoria são o ponto forte da administração. Quando questionados sobre os principais problemas, menos de 5% citam questões como limpeza, calçamento, transporte coletivo, trânsito, moradia, mobilidade e riscos de deslizamentos. Os dois mais citados (perto de 20%), segurança e saúde, não são da alçada exclusiva dos prefeitos.
Uma gestão aprovada pela população é, claro, o caminho mais curto para manter o mandato, mas há uma série de outros fatores. Para o cientista político Antonio Lavareda, diretor do Ipespe Analítica, um deles é a exposição. “São amplamente conhecidos e estão trabalhando para ser reeleitos desde o primeiro dia do mandato. São vistos pela opinião pública como candidatos naturais, ao passo que a nossa legislação restringe a visibilidade das candidaturas dos desafiantes”, avalia. Outro ponto é dispor de mais recursos financeiros porque controlam grandes máquinas públicas. Além disso, eles têm o domínio da agenda administrativa e a possibilidade concreta de transformar as alianças que lhes dão sustentação nas Câmaras em coligações eleitorais, com os consequentes arco de apoio político e mais tempo de TV. “Eles têm também posição privilegiada para angariar doações de pessoas físicas, equipes treinadas que conhecem os meandros da administração, com facilidade para fazer programas de governo, e relacionamento continuado com diversos setores da sociedade”, completa. O cientista político Rubens Figueiredo acrescenta o poder de distribuir cargos a lideranças locais e o fato de conhecerem melhor os problemas da cidade porque estão lidando com as dificuldades no dia a dia. “Além disso, acabam se valendo da propaganda da prefeitura”, afirma.
A identificação com o trabalho do gestor dá segurança à escolha do eleitor, que se guia mais por isso do que pelas questões ideológicas. Eduardo Paes, que está no terceiro mandato, tem a gestão considerada ótima ou boa por 46% do eleitorado — outros 36% a avaliam como regular e 16% a consideram ruim ou péssima. Segundo o Datafolha, apesar de ser próximo a Lula, por quem é apoiado, ele tem 42% dos votos daqueles que escolheram Bolsonaro em 2022 e 49% dos eleitores que se identificam como de direita. “A eleição municipal é bem local. A polarização política tem alguma influência, mas não é tão relevante”, avalia Marcos Pereira, presidente do Republicanos, um dos partidos que, a depender da cidade, transita da direita à esquerda em suas alianças.
Fatores históricos também contam nas disputas municipais. João Campos, por exemplo, é herdeiro de uma das mais longevas dinastias políticas do Nordeste — é bisneto de Miguel Arraes e filho de Eduardo Campos, dois ex-governadores populares no estado. Em Salvador, a histórica rejeição ao petismo mantém altas as chances de reeleição de Bruno Reis, aliado do ex-prefeito ACM Neto. Mesmo com o PT comandando o estado há cinco gestões, o carlismo caminha para emplacar o quarto mandato seguido na capital. Pesa também o bom trabalho: a gestão de Reis é aprovada por 75% dos eleitores, segundo o Paraná Pesquisas. Em Maceió, João Henrique Caldas também se vale do histórico à direita do eleitorado: a cidade foi a única capital do Nordeste onde Bolsonaro bateu Lula, com 57% dos votos.
Se a boa avaliação ajuda, o trabalho questionável, na opinião dos eleitores, pode ser fatal. É o caso dos prefeitos de Belém, Edmilson Rodrigues (PSOL), e de Fortaleza, José Sarto (PDT), que estão com dificuldades para obter um novo mandato. O primeiro tem 13% dos votos, segundo o Paraná Pesquisas, e uma rejeição de 75%. O cearense está com 18% das preferências e a reprovação de 53% do eleitorado. Outro prefeito em dificuldades é Fuad Noman (PSD), de Belo Horizonte. Vice de Alexandre Kalil, ele assumiu em 2022, quando o titular deixou o cargo para tentar o governo do estado, e larga com apenas 9% das intenções de voto, segundo a Quaest.
O favoritismo dos atuais prefeitos não é a única imagem que se destaca na fotografia da largada eleitoral. Outra constatação é a boa posição dos partidos mais localizados ao centro. Nas 26 capitais, dezesseis têm à frente nas pesquisas políticos representantes de siglas como União Brasil, PSD, MDB, PP e Republicanos. O quadro coloca um grande desafio para PL e PT, os dois maiores partidos, mas que não elegeram nenhum prefeito nas capitais em 2020 — após a eleição, o PL filiou João Henrique Caldas, de Maceió, e Tião Bocalom, de Rio Branco. As principais apostas do PT são Porto Alegre, com Maria do Rosário (a única petista que lidera nas capitais), Teresina, com Fábio Novo, e Fortaleza, com Evandro Leitão. “A disputa não é fácil. Mas alguns prefeitos estão desgastados”, aposta o senador Humberto Costa, coordenador do grupo de trabalho eleitoral do PT. “Temos várias candidaturas competitivas. Estamos fazendo o acompanhamento dessas cidades com lupa e vamos investir recursos do fundo eleitoral”, acrescenta Jilmar Tatto, secretário de comunicação do partido. A estrela da charanga petista, claro, será Lula. No sábado 20, ele abre a temporada de convenções em São Paulo no evento que irá confirmar a chapa de Guilherme Boulos com a petista Marta Suplicy. Nos últimos meses, o presidente intensificou a agenda de viagens e deve gravar vídeos com os principais candidatos, aproveitando a melhora recente de seu índice de popularidade.
O maior opositor do petismo e da esquerda enfrenta desafios similares. O PL de Bolsonaro tem candidatos em dezesseis capitais e está bem posicionado em pelo menos cinco. O presidente da sigla, Valdemar Costa Neto, tem a meta ambiciosa de conquistar mais de 1 000 prefeituras. A dificuldade é saber o quanto o ex-presidente irá se empenhar. Em 2020, ele apoiou apenas treze candidatos, só dois em capitais, ambos derrotados (Marcelo Crivella no Rio e Capitão Wagner em Fortaleza). Neste ano, a prioridade é a capital do estado fluminense, que é governado pelo partido e reduto eleitoral do clã Bolsonaro. O candidato Alexandre Ramagem (PL), no entanto, saiu bastante chamuscado das últimas revelações sobre a Abin paralela, um esquema de arapongagem clandestina montado no governo Bolsonaro. Nesta semana, o ex-presidente foi ao Rio e fez campanha ao lado de Ramagem, que tem 7% nas pesquisas. Além de Ramagem, Bolsonaro só externou apoio nas capitais a Éder Mauro, que lidera em Belém, Janad Valcari, de Palmas, e Fred Rodrigues, em Goiânia. Em São Paulo, onde o PL apoia Ricardo Nunes, Bolsonaro ainda não teve — e não há, por ora — nenhuma agenda pública de campanha.
Analistas e lideranças políticas concordam que a disputa pelas prefeituras tende a ser um ensaio geral para 2026 e que a eleição de prefeitos e vereadores pode ser um trampolim não só para levar à Presidência daqui a dois anos como para montar uma base forte no futuro Congresso. O quadro atual mostra que os dois principais polos de projeto político para 2026 terão de se desdobrar para derrubar a tendência ao conservadorismo do eleitor na definição sobre quem prefere no comando de sua cidade. Mais do que radicalismo ideológico, o que parece contar é a busca do cidadão por segurança administrativa e a prioridade dada aos temas do cotidiano — o que é um bom sinal.
Colaborou Isabella Alonso Panho
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902