Negacionista com reputação internacional, Jair Bolsonaro tem uma dificuldade notória para lidar com os fatos, mas estes não deixam dúvida: a imagem do governo e o apoio popular ao presidente estão derretendo devido à lentidão na vacinação contra a Covid-19 e à crise econômica. Ainda é cedo para saber se esse processo é irreversível e se a reeleição do ex-capitão, que até pouco tempo atrás cavalgava como franco favorito, está ameaçada. Mesmo assim, é fato que Bolsonaro vive o seu pior momento desde o início do mandato. No campo político, a oposição está controlando os trabalhos da CPI da Pandemia e desgastando a cada depoimento a administração federal. Na área econômica, há sinais de recuperação, mas o desemprego atinge 14 milhões de pessoas e a inflação dos alimentos disparou, afetando o bolso e o humor de parcela expressiva da população. Outro revés ocorreu na seara eleitoral, com o ex-presidente Lula aparecendo na mais recente pesquisa de intenção de voto à frente de Bolsonaro tanto no primeiro quanto no segundo turnos, com ampla vantagem em ambos os casos.
Como ocorre todas as vezes em que se sente acuado, o presidente reagiu à conjuntura desfavorável partindo para o ataque. Ele recorreu à sua estratégia mais conhecida, de fustigar Lula, reforçar a polarização com o antecessor e insuflar o antipetismo, com o objetivo de manter mobilizada a sua base de apoio. “Se tiraram da cadeia o maior canalha da história do Brasil, se para esse canalha foi dado o direito de concorrer, o que me parece é que, se não tivermos o voto auditável, esse canalha pela fraude ganha as eleições do ano que vem”, declarou Bolsonaro ao discursar, no sábado 15, em manifestação organizada por ruralistas em defesa de sua gestão. Três dias antes, o Datafolha tinha divulgado o seu primeiro levantamento realizado após o Supremo Tribunal Federal (STF) devolver os direitos políticos a Lula. Nas simulações de primeiro turno, o petista registrou 41% de intenções de voto, contra 23% de Bolsonaro. Nas de segundo turno, a vantagem foi ainda maior, de 55% a 32%. Na pesquisa, até o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) supera o ex-capitão em eventual segundo turno. Esses números estão por trás da insistência de Bolsonaro na pregação pelo “voto auditável” e na estratégia dele de lançar suspeita sobre a lisura da próxima votação — suspeita que será deixada de lado, obviamente, caso ele vença nas urnas.
Há pelo menos duas explicações para a decisão de Bolsonaro de eleger Lula como o seu principal rival. Como em 2018, ele quer se consolidar como o único nome capaz de impedir a volta do PT ao poder. Para tanto, planeja explorar as denúncias de corrupção contra o ex-presidente ainda pendentes de julgamento. Bolsonaro também quer impedir o surgimento de outros candidatos competitivos. O raciocínio é o seguinte: quanto maior a polarização com Lula, menor a chance de construção de uma candidatura de centro capaz de chegar ao segundo turno. Por que o centro, cujos nomes patinam nas pesquisas, preocupa o presidente? Porque alguns parlamentares e cientistas políticos especulam que, se alguém ficar de fora do segundo turno, será Bolsonaro. Esse cenário seria possível — apesar de hoje ser considerado improvável — caso a aprovação ao governo diminua ainda mais até o ano que vem. Pesquisas do Ideia Big Data revelam que o índice de bom e ótimo da gestão Bolsonaro caiu de 31% para 24% entre fevereiro e maio. Já o porcentual de ruim e péssimo passou de 43% para 50% no mesmo período. Hoje, a sua popularidade é influenciada sobretudo pela pandemia e pela economia, que devem pautar o debate eleitoral.
“Se a gente tiver um cenário muito ruim da pandemia daqui até o fim do ano e a coisa se estender para 2022, teremos um governo mais enfraquecido. Nos lugares em que houve eleição com a pandemia estabilizada num nível alto ou com curva ascendente, os governos perderam, como ocorreu nos Estados Unidos e na eleição municipal da França, em que o partido de Emmanuel Macron sofreu uma enorme derrota”, diz Maurício Moura, fundador do Ideia Big Data e professor visitante da Universidade George Washington. Para ele, o ritmo de vacinação no Brasil, que não corresponde às expectativas da população, serve de catalisador para o aumento da reprovação ao governo. Presidenciável, o governador João Doria (PSDB) compartilha dessa análise. Tanto que apostou na imunização em São Paulo — iniciada antes da do restante do país e com uma vacina criticada pelo presidente — para se contrapor a Bolsonaro e tentar cooptar eleitores do centro à direita que votaram no ex-capitão em 2018. Até agora, o plano do tucano não deu certo. “Se a situação da pandemia estiver melhor, a discussão eleitoral será sobre a economia. Aí Bolsonaro terá mais possibilidade de estar no segundo turno”, acrescenta Moura.
O PT sabe bem da importância das pautas pandemia e economia. Chamado para a briga por Bolsonaro, Lula pretende ignorá-lo na troca de xingamentos e acusações. Suas energias, segundo os petistas, serão dedicadas à defesa da aceleração da vacinação, à volta do auxílio emergencial no valor de 600 reais e à adoção de medidas de apoio a micro e pequenas empresas. O ex-presidente acredita que Bolsonaro, diante da dificuldade para conter a pandemia e reativar a economia, radicalizará no discurso e apostará na instabilidade política. Por isso, uma das estratégias de Lula será envergar o mesmo figurino de conciliador com que desfilou durante a campanha vitoriosa de 2002. O petista já teve conversas com líderes políticos, inclusive de partidos de centro, prepara uma agenda com movimentos sociais e empresários e escalou expoentes da academia para debater a conjuntura econômica (leia a matéria aqui). Há otimismo no PT, mas há também a consciência de que a aparente fragilidade de Bolsonaro e a aparente força de Lula não estão consolidadas.
“A pesquisa é uma fotografia do momento. Ela mostra duas coisas. Que o Lula se consolida como a principal alternativa ao Bolsonaro, ao bolsonarismo, e revela um momento de defensiva do governo, por causa da tragédia da Covid-19, da CPI, da não recuperação econômica. As eleições estão muito longe ainda. Tem muita coisa para acontecer até lá”, diz o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP). Em 2018, Bolsonaro conquistou a Presidência sem ter tempo de televisão e recursos públicos comparáveis aos reservados ao então concorrente petista, o ex-ministro Fernando Haddad. Foi decisivo para o sucesso do ex-capitão o garimpo de votos que ele fez nas redes sociais, à época deixadas de lado pelos petistas. No começo de seu mandato, Bolsonaro continuou a reinar sozinho nessa seara. As células de oposição nas redes sociais só começaram a surgir com mais força no ano passado — mesmo assim, organizadas por influenciadores digitais, que passaram a criticar o governo em temas como a pandemia e o desmatamento da Amazônia. Lula não quer que o PT repita o erro de 2018.
O ex-presidente reforçou sua presença nas redes sociais. De olho em 2022, convocou o jornalista Franklin Martins, seu ex-ministro, para coordenar o trabalho nessa área. “Caiu a ficha no PT de que não dá para fazer política, enfrentar o debate público hoje, sem dar um salto na presença nas redes sociais”, afirma Padilha. A aposta parece certeira. Bolsonaro quase sempre lidera um ranking diário de popularidade digital de políticos elaborado pela Quaest Consultoria. Para definir as posições na lista, a empresa coleta dados em redes sociais e ferramentas de busca e leva em consideração indicadores como número de seguidores, capacidade de promover engajamento e quantidade de reações positivas às mensagens postadas. Com essas informações, confere uma pontuação de 0 a 100 a cada político. Em 11 de maio, um dia antes do depoimento à CPI da Pandemia do ex-secretário de Comunicação da Presidência Fabio Wajngarten, Bolsonaro estava em primeiro lugar, com 83,38 pontos. Lula aparecia em segundo, com 57,35 pontos. Na quarta-feira 19, dia do depoimento do ex-ministro Eduardo Pazuello, o petista ficou na dianteira, com 72,33 pontos, ante 70,23 do atual presidente.
“As redes estão reafirmando a importância da economia como determinante para a decisão do voto em 2022”, diz o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest. Pandemia e economia andam juntas. Debelar a primeira ajuda a oxigenar a segunda. O Planalto até agora não fez nem uma coisa nem outra. Na CPI, os próprios auxiliares do presidente contribuem para o desgaste do antigo chefe. Wajngarten declarou que o governo deixou uma proposta de oferta de vacinas da Pfizer à espera de resposta por meses. O ex-chanceler Ernesto Araújo afirmou à comissão que mobilizou a estrutura do Ministério das Relações Exteriores, a pedido do presidente, para comprar remédio sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19. Já Pazuello disse que nunca recebeu ordem de Bolsonaro, mesmo depois de aparecer num vídeo — após ser desautorizado por Bolsonaro a levar adiante uma negociação para a compra da CoronaVac — explicando que “um manda, e o outro obedece”.
No caso da economia, é o presidente quem sabota os esforços pela recuperação. Apesar de defender nos discursos a agenda liberal, Bolsonaro não se empenha nem pelas reformas nem pelas privatizações e dificulta assim a retomada (leia matéria na pág. 44). Auxiliares do presidente reconhecem o momento de dificuldade, mas lembram que há tempo para recuperar o terreno perdido. Eles afirmam que, a partir de setembro, a maior parte da população estará vacinada e esse assunto será página virada. Dizem ainda que, com a pandemia sob controle, a economia ganhará tração e entrará em ritmo acelerado no ano da eleição. O presidente, hoje em dificuldade, chegaria revigorado à disputa do novo mandato. “O saldo do luto em 2022 será determinante”, avalia um conselheiro de Bolsonaro. Essa análise, que embute uma boa dose de torcida, faz todo o sentido, já que o saldo atual é inegavelmente negativo.
Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739