Um bilhete apócrifo apreendido em julho de 2015 por policiais federais foi a gota d’água para o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, determinar abertura de um inquérito sigiloso na Corte para investigar a Operação Lava-Jato. O manuscrito, apreendido no apartamento do consultor Flávio Lúcio Magalhães há quase seis anos, foi localizado no início de fevereiro no acervo de mensagens hackeadas dos telefones dos procuradores da então força-tarefa comandada por Deltan Dallagnol.
As mensagens hackeadas e agora compartilhadas com o próprio STJ mostram que a existência do bilhete apreendido com Flávio Lúcio causou euforia entre os procuradores, que celebraram o trunfo em conversas por meio do aplicativo Telegram. Em trechos a que VEJA teve acesso, eles comemoram ter conseguido relacionar o consultor, alvo de um mandado de prisão temporária na época, ao operador Leonardo Meirelles, ligado a operações cambiais fraudulentas investigadas na Lava-Jato. Em outras conversas, eles dizem que as anotações poderiam ser prova de “propina para assessores” dos ministros do STJ.
Agora o STJ quer utilizar o inquérito para pedir buscas e apreensões e produzir provas que confirmem a suspeita de que integrantes da então força-tarefa da Lava-Jato tinham interesse em constranger os ministros da Corte. Nos últimos dias, o presidente Humberto Martins conversou com colegas em busca de apoio. Procurou integrantes das turmas criminais, responsáveis por julgar, entre outros, casos relacionados à Lava-Jato, e expôs seus motivos também a juízes que, por serem os mais antigos do tribunal, integram a Corte Especial, colegiado que deve vir a ser instado a julgar no futuro a legalidade da investigação.
O procedimento no STJ foi aberto sem a provocação de outro órgão, como o Ministério Público, e sem pedido formal dos ministros nomeados no bilhete apreendido. Martins repete os passos do Supremo Tribunal Federal (STF) que, diante de ataques contra seus integrantes em redes sociais, decidiu iniciar em março de 2019 uma apuração própria para detectar origens e planos de agressão aos juízes, expedir ordens de busca e de prisão contra críticos do tribunal e quebrar sigilos de suspeitos de financiar uma rede de ameaças aos magistrados.
No STF, o inquérito chegou ao ponto de censurar uma reportagem que fazia menção a mensagens em que o empreiteiro Marcelo Odebrecht citava o ministro Dias Toffoli. “O exemplo do Supremo chegou ao STJ e está corroendo as instituições democráticas”, resumiu um ministro do tribunal contrário à instauração do inquérito. Para o procurador-geral da República Augusto Aras, que anunciou que pode recorrer até a cortes internacionais para arquivar o inquérito, a investigação de membros do MP nessas circunstâncias é “extremamente grave e preocupante”.
Segundo magistrados ouvidos por VEJA, a intenção de Martins é reunir provas independentes para embasar a suspeita de que procuradores de Curitiba acessaram bases da Receita Federal ou fizeram investigações fora da lei para atingir o tribunal. Por terem foro privilegiado, os ministros não poderiam ser investigados pela equipe do procurador Dallagnol.
As mensagens dos hackers apreendidas traziam indicativos de que a equipe de Dallagnol discutia a possibilidade de fazer uma “análise patrimonial” dos bens dos juízes em parceria com a Receita Federal e cogitava a realização de um pente-fino em todos os processos que tramitavam no STJ de interesse da Andrade Gutierrez. Magalhães foi apontado pelo doleiro Alberto Yousseff, em delação premiada, como o responsável por trazer para o Brasil dinheiro da empreiteira do exterior.
Procurado, o ministro Humberto Martins não quis comentar o inquérito aberto no STJ. A Lava-Jato disse que os procuradores “jamais praticaram qualquer ato de investigação sobre condutas de autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função, sejam ministros do STJ, seja qualquer outra autoridade” e afirmou que “busca-se criar artificialmente um ambiente de irregularidades e ilegalidades que jamais existiu para favorecer retrocessos no combate à corrupção”.