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“Podemos falar em cura”, diz Jim Allison, um dos pais da imunoterapia

O cientista americano, Nobel de Medicina, conta por que vivemos um divisor de águas contra o câncer — fruto da crença na ciência

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 12 jan 2024, 10h57 - Publicado em 12 jan 2024, 06h00

Qualquer livro que pretenda contar a história da medicina contra o câncer não poderá deixar de dedicar um capítulo ao imunologista Jim Allison, do prestigiado MD Anderson Cancer Center, no Texas. Graças às suas descobertas, hoje contamos com o que já se batizou de quarto pilar no tratamento do câncer, a imunoterapia, que veio reforçar o arsenal de cirurgia, químio e radioterapia. As pesquisas deste americano de 75 anos abriram caminho a uma novíssima classe de medicamentos que tiram o freio do sistema imune para reconhecer e contra-­atacar tumores — um dos motivos pelos quais a doença, insidiosa, tapeia o organismo. Não por menos, Allison dividiu o Prêmio Nobel de Medicina de 2018 com o japonês Tasuku Honjo. No momento em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) acaba de aprovar a terceira categoria de imunoterápicos no Brasil, o professor falou a VEJA com exclusividade sobre o papel indispensável da ciência básica para trazer à tona inovações e alívios para os males da humanidade. E por que, felizmente, já podemos falar na cura de alguns tipos de câncer.

Uma série de avanços na medicina é fruto de pesquisas que, à primeira vista, não têm uma aplicação prática. Por que é crucial investir nelas? Para saber como funciona qualquer coisa, é preciso descobrir quais são as alavancas e os botões, o que você pode empurrar ou apertar, digamos assim. Você realmente precisa saber as estruturas em jogo antes de começar a mexer com elas. No mínimo para perceber se aquela ideia não poderá trazer danos a alguém. No meu campo, quando desvendaram lá atrás que havia um fator de crescimento para as células T (unidades de defesa que reagem contra o câncer), simplesmente começaram a usar toneladas dessa substância nos pacientes para tentar tratar o problema e não notaram que esses fatores faziam muito mais do que induzir o crescimento das células, o que deixava as pessoas tratadas bastante doentes, algumas até chegaram a morrer. Tempos depois, cientistas tentaram fazer uma vacina terapêutica contra o câncer, e ela tampouco funcionou. Até que, em nosso trabalho, demonstramos que o câncer consegue desligar sinais que ativam as células de defesa. Então poderíamos imunizar os pacientes de outra forma para mudar essa história. Quando eu era jovem, havia um pessoal na Universidade do Texas estudando a vida sexual das moscas — até zombavam disso. Mas, graças a esse conhecimento, eles desvendaram um jeito de esterilizar os machos do inseto, que passavam doenças ao gado, e os soltaram no ambiente, cortando, assim, o ciclo de reprodução das moscas. Isso salvou a indústria pecuária local naquela época. É por essas e outras que a ciência básica é incrivelmente importante.

“Não acredito que um dia iremos abrir mão totalmente da quimioterapia ou da radioterapia, mas teremos vias muito menos tóxicas de utilizá-las nos pacientes”

Foi assim que se chegou também à imunoterapia. Qual o trunfo dela? Bem, quando você intervém no sistema imunológico, não no câncer em si, pode pensar que esse seria um tratamento universal para os tumores. É diferente de quando você inventa um medicamento focado numa mutação específica, que só vai tratar aquele tipo de câncer. Então, com a imunoterapia, levantamos a possibilidade de atacar todos os cânceres, porque a droga não mira o tumor em si. É claro que a estratégia não é perfeita. Mas é uma abordagem diferente das demais. O ponto é que o sistema imunológico pode detectar qualquer mutação genética potencialmente perigosa. Não importa se ela tenha a ver com o câncer ou não. Se tem alguma coisa numa célula que não deveria estar lá, a imunidade pode matá-la. Sabemos, contudo, que os tumores variam muito entre si. E podem apresentar um grande número de mutações. Os melanomas (câncer de pele mais agressivo), por exemplo, são causados por mutações deflagradas pela radiação ultravioleta da luz solar. O câncer de rim pode ser provocado por exposição a carcinógenos na fumaça… Mas é difícil tratar esses tumores com muitas mutações por meios convencionais. Só no melanoma pode haver mil mutações diferentes por célula. Com a imunoterapia, podemos focar o sistema imunológico para acertar o alvo.

E o que isso muda na vida do paciente? O que empolga hoje é o fato de que podemos curar pacientes. E quero dizer curar mesmo. Eu costumava ter muito cuidado há dez anos ao usar essa palavra, mas, agora, com milhares de pessoas tratadas com sucesso pela imunoterapia, podemos falar em cura. Ao menos no sentido de décadas de vida sem precisar de um tratamento. Ao obter uma boa resposta imunológica, com a imunoterapia chegamos a curar 60% dos casos de melanoma. Antes de 2011, quando não tínhamos esse recurso, a doença era essencialmente incurável. Atualmente, algo entre 55% e 60% dos pacientes com melanoma em estágio avançado estão vivos anos após o tratamento. E temos resultados animadores para câncer de rim, bexiga e pulmão.

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Mas essa tática é aplicável a qualquer tipo de câncer? Estamos trabalhando nisso. O que sabemos hoje é que é possível promover curas para alguns tipos de câncer, mas não para todos eles. Sem dúvida, de qualquer forma, o cenário é bem melhor do que alguns anos atrás. Então continuamos a estudar e a pensar em maneiras de atingir de modo mais eficaz outros tumores, assim como temos testado a combinação de abordagens: químio mais imunoterapia, radiação mais imunoterapia… Veja, não acredito que um dia iremos abrir mão totalmente da quimioterapia ou da radioterapia, mas teremos vias muito menos tóxicas de utilizá-las nos pacientes. Pensando na imunoterapia, é possível que demoremos um pouco para chegar a alguns tipos de câncer, mas sou otimista quanto a podermos fazer alguma coisa por esses pacientes.

Que outras fronteiras mais o animam no tratamento oncológico? Hoje temos a possibilidade de, ao identificar um antígeno nas células tumorais, coletar células de defesa do paciente e introduzir nelas genes para que possam buscar esses alvos e atacar o câncer. Isso funciona em leucemias, por exemplo, mas ainda não em tumores sólidos. A questão é que não temos tantos alvos para essa terapia, a CAR-T. Outra dificuldade é a complexidade do processo. Você precisa pegar linfócitos T do paciente, introduzir genes neles, fazê-los crescer em laboratório e injetá-los no indivíduo. Eu acredito que esse tipo de terapia tem seu lugar e vai melhorar no futuro, mas o desafio é como tratar 5 milhões de pessoas por ano dessa forma.

No que o senhor e sua equipe andam trabalhando no laboratório? Estamos lidando com os dois alvos principais da imunoterapia, que até recentemente eram os únicos utilizados nesse tratamento, o CTLA-4 e o PD-1. Tanto esses alvos como as drogas que os miram envolvem propriedades e características diferentes. Sabemos, por exemplo, que os anticorpos para o PD-1 não fornecem uma resposta tão durável no organismo. Com o CTLA-4 temos uma memória de defesa inerentemente melhor. Então estamos investigando os mecanismos moleculares detalhadamente e maneiras de combiná-los para que funcionem melhor. Mais recentemente, uma terceira molécula foi desenvolvida, tendo como foco um novo alvo, o LAG-3. Então, o que me preocupa hoje é como podemos unir melhor esses agentes, sem adicionar tanta toxicidade ao tratamento, para combater o tumor.

O que o fascina tanto no sistema imune? Quando eu comecei na área, só conhecíamos os linfócitos B, os produtores de anticorpos. São células que fabricam aquelas proteínas que circulam no sangue e, ao ver um vírus, buscam neutralizá-lo. Naquela época, na imunologia, falava-se basicamente neles. Até que assisti a uma palestra de um professor que nos contou das descobertas sobre novas células, os linfócitos T. Eles se desenvolvem numa glândula no meio do peito, o timo, e, depois de maturar, percorrem todo o corpo, procurando literalmente se há algo de errado pelo organismo, como uma célula infectada por um vírus ou, embora não houvesse certeza naquela época, uma célula cancerosa. Foi a coisa mais legal que eu tinha ouvido até então. Daí comecei a imaginar como aquilo funcionava, a tentar descobrir como uma célula de defesa que percorre toda parte pode atacar só células doentes e não destruir as sadias. Como recebi formação em bioquímica, apliquei meus conhecimentos ao me mudar para a imunologia no fim dos anos 1960 e início dos 1970. Porque, além do fascínio pelas descobertas em si, pensei que, se conseguíssemos responder a algumas perguntas, também poderíamos tratar melhor o câncer.

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“A minha busca partia de uma questão: o que você precisa fazer para matar o câncer? Que truques podemos tentar para sermos bem-sucedidos? O Nobel foi um reconhecimento”

Qual a pergunta de 1 bilhão de dólares na imunologia hoje? Olha, acho que há muitas coisas que ainda não sabemos, como a conexão entre o sistema nervoso e o sistema imunológico. Estamos investigando, por exemplo, como neurotransmissores usados na conversa entre os neurônios também podem participar da comunicação com o sistema imune. Ao entender melhor isso, poderemos vislumbrar como essa história se encaixa na saúde mental. Sabemos que a imunidade tem um papel na doença de Alzheimer. Então essas informações podem abrir novas perspectivas de tratar distúrbios neurodegenerativos que se desenvolvem com o envelhecimento.

Em que medida a pandemia turbinou os estudos voltados à imunidade? O coronavírus deu um grande empurrão para pesquisas que, na realidade, já vinham sendo feitas havia pelo menos vinte anos. Com as novas vacinas de RNA, agora podemos pegar apenas um gene para despertar a resposta do sistema imunológico — não precisamos mais do vírus inteiro, como no passado. Também estamos aperfeiçoando o entendimento e o potencial uso dos linfócitos. Porque, no fim das contas, a célula T está no centro de toda a história, tanto nas infecções como no câncer. Fora os avanços em genética, uma descoberta interessante nos últimos anos é a de um componente do sistema imunológico chamado estruturas linfoides terciárias. Elas reúnem tanto linfócitos B como T e, quando os pacientes as apresentam, provavelmente rejeitarão seus tumores. Essas estruturas estão relacionadas a uma melhor reação à doença e à maior sobrevivência, mas temos de entender melhor seu papel no tratamento.

O Prêmio Nobel mudou sua vida? Bem, um pouco (risos). É divertido estar a caminho da aposentadoria, com tantas celebrações, e perceber que algumas coisas no tratamento do câncer teriam sido impossíveis sem o seu trabalho. No passado, muitas vezes disseram que eu era um tolo por insistir numa linha de pesquisa. Mas o ponto é que a minha busca partia de uma questão: o que você precisa fazer para matar o câncer? Que truques podemos tentar para sermos bem-sucedidos nisso? O Prêmio Nobel foi um reconhecimento por esse trabalho. E há toda uma ciência sólida por trás disso.

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Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875

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