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Lily Gladstone a VEJA: ‘Os indígenas devem estar em todos os lugares’

Estrela do filme 'Assassinos da Lua das Flores' e uma das favoritas ao Oscar de melhor atriz, a nativa americana exalta a luta global dos povos originários

Por Kelly Miyashiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 fev 2024, 11h12 - Publicado em 9 fev 2024, 06h00

No auge da pandemia de Covid-19, em 2020, a atriz Lily Gladstone, 37 anos, se inscreveu num curso de análise de dados e cogitou uma medida drástica: abandonar a carreira nas telas, após conquistar só um papel de destaque no currículo, no filme independente Certas Mulheres (2016). O êxito solitário, porém, não foi em vão: ela chamou a atenção de um mestre do ramo, o cineasta Martin Scorsese. Impressionado com a expressão magnética da novata, o diretor convocou a nativa americana, descendente da nação Blackfoot, para uma reunião por videoconferência. Assim ela conquistou o papel principal de Assassinos da Lua das Flores, longa produzido pela Apple Original Films que resgata a história do massacre do povo Osage por brancos nos anos 1920. Agora, a colega de Leonardo DiCaprio no filme é uma das favoritas ao Oscar de atriz na cerimônia do dia 10 de março — e sua mera indicação já fez história, pois é a primeira indígena americana que concorre na categoria. Em entrevista a VEJA, Lily fala sobre a importância da representatividade em Hollywood, da luta de povos originários pela preservação da natureza e de sua admiração por um dramaturgo brasileiro.

Seu desempenho como Mollie Burkhart em Assassinos da Lua das Flores ressaltou a importância de escalar uma autêntica nativa americana no cinema. Em que medida seu êxito pode mudar Hollywood em termos de representação dos povos indígenas? Espero que esse filme ajude as pessoas a perceber que nós, indígenas, deveríamos estar em todos os lugares. Parece ridículo que seja visto como algo inovador que nativos estejam interpretando nativos no cinema. Isso deveria ser a praxe, deveria ser o mínimo. Eu sinto que é absolutamente fundamental que possamos contar nossas próprias histórias.

No Brasil, assassinatos de lideranças indígenas infelizmente ainda são frequentes. Como vê as ameaças a povos originários no mundo atual? É triste que as forças colonizadoras passem por ondas: num momento, estão apaixonadas pelos povos, terras e culturas indígenas; e então simplesmente começam a explorá-los, querendo mais e mais até que não tenhamos nada. Muitas vezes, ainda, trabalham sistematicamente para minar quem somos a cada passo, enquanto deixam claro que é justamente por causa de quem somos que estão fazendo isso.

Houve uma grande participação do povo Osage, que sofreu o massacre silencioso retratado em Assassinos da Lua das Flores, na produção do filme? Sim, os povos nativos são muito unidos, e, no caso desse filme, havia pessoas Osage em cada departamento, principalmente no set. Eu sou da nação Blackfoot e não queria aplicar minha própria visão de mundo e perspectiva de onde vim na construção de Mollie e sua comunidade. E também não queria a tarefa de responder a perguntas para as quais não sabia a resposta. Foi incrível ter alguém Osage para tirar dúvidas, e ter múltiplas gerações presentes nesse projeto trouxe diversas perspectivas, com pessoas mais velhas que tinham lembranças de pessoas daquela época e jovens assumindo esse trabalho de revitalização da linguagem, com a perspectiva de qual é a nossa representação agora e para onde queremos ir.

“Saber que o Leonardo DiCaprio, um grande ativista climático que tem vasto interesse na Amazônia, estava muito envolvido nesse filme me deu confiança de que haveria respeito com os indígenas”

Teve receio sobre a forma como os indígenas seriam retratados no filme? Eu fiquei muito nervosa ao me candidatar e até em aceitar esse papel sabendo da magnitude que o filme alcançaria. Mas saber que o Leonardo DiCaprio — um grande ativista climático que tem um interesse particular na Amazônia — estava muito envolvido nesse projeto me deu muita confiança de que seria algo bom.

Como assim? Há muitos ativistas climáticos no mundo que gostam de greenwashing (promover-se em cima de discursos sustentáveis falsos), ou ainda ecofascistas que muitas vezes sufocam a voz indígena para tentar nos dizer o que fazer. Mas Leo sempre entendeu, através de seu ativismo climático, que os povos indígenas são os verdadeiros administradores que sustentam, protegem e cuidam do nosso mundo. Uma história sobre a extração de petróleo de uma área indígena e sobre a maneira como um homem está tirando tudo de uma nativa é uma clara analogia a esses governos colonizadores e seu tratamento aos povos indígenas. Além disso, ainda existe a força colonizadora global do capitalismo explorando de forma devastadora o mundo natural, que é protegido, cuidado e administrado pelos povos originários.

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Sentiu dificuldade em contar essa parte sombria da história americana? Sim, absolutamente. Mesmo que a história tenha se passado na década de 1920, muita coisa não mudou. E é possível encontrar analogias com várias partes do mundo. Povos de diversos países já sofreram massacres. Precisamos contar essas histórias. É irônico que o FBI tenha se formado nos Estados Unidos para solucionar casos de assassinatos de indígenas e que hoje eles não façam mais esse trabalho. O mesmo ocorre no Canadá. Lá, temos mulheres indígenas assassinadas, desaparecidas, e o governo segue o mesmo padrão típico de não investigar. Tive até momentos de pânico no set ao pensar nessas coisas. Em resumo, sim, foi bem difícil.

Como lidou com essas crises de pânico? Apesar da história brutal, a realidade no set era de surpresa e alegria contínuas, porque havia uma imensa variedade de povos indígenas participando do filme, com nativos de todos os cantos dos Estados Unidos. Uma das atrizes figurantes até saiu perguntando a origem de cada um e acabou contabilizando cerca de 230 tribos diferentes ali, em cenas como a do casamento ou dos desfiles de rua. Vivenciar isso foi muito emocionante para mim.

Diria que foi como uma epifania de pertencimento? Creio que sim, tivemos momentos muito divertidos, com crianças e idosos por perto, e criamos um ambiente confortável e familiar. Enquanto as câmeras filmavam o trauma, nos bastidores tínhamos uma comunidade, um mundo onde nos importamos uns com os outros. Porque nós importamos.

Ter tantas origens diferentes nos bastidores foi um problema durante o processo? De maneira alguma. Foi adorável ter essa diversidade de pensamentos e opiniões dentro da comunidade Osage, guiando e moldando cada passo do caminho. Foi espetacular ver a produção tomar forma e assisti-la responder a isso. Além disso, o fato de uma história como essa ter recebido uma verba tão grande, de 200 milhões de dólares, deve ter aberto um novo precedente. E Hollywood só dá tanto assim para cineastas como Martin Scorsese. Também me emociono ao ver nosso filme sendo lançado ao mesmo tempo que outros programas incríveis como Reservation Dogs (do Star+), série de que participo e que também conta com atores e produtores indígenas.

Reservation Dogs segue um grupo de jovens indígenas tentando sair de uma reserva, localizada em Oklahoma, para viajar até a Califórnia. Por que acha que fez tanto sucesso? É uma série muito inovadora. Foi o programa número 1 em várias listas críticas renomadas. Isso mostra que o que nos contaram por tanto tempo, que nossas histórias são muito míopes, culturalmente específicas e pouco atrativas a um público amplo é — desculpe o palavreado — bobagem. As pessoas estão muito animadas em ver nossas histórias. Um dos criadores da série, Sterling Harjo (ao lado de Taika Waititi), também é nativo americano, e temos novos projetos encaminhados porque somos artistas incríveis que ocupam um lugar na tela e têm uma certa voz artística que realmente agrada as pessoas.

Não se sente limitada ao ser escalada para projetos assim por causa de sua ascendência indígena? Embora haja representação nativa nesses projetos, porque somos nativos, não estamos assumindo a responsabilidade de representar uma história estereotipada. Pudemos ser nativos apenas contando uma história humana, interpretando personagens que até poderiam ser interpretados por qualquer um, mas que se tornam mais ricos, peculiares e dinâmicos por causa de quem somos. E quero ver mais disso na tela.

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“Sou fascinada pela técnica do Teatro do Oprimido, criada pelo dramaturgo Augusto Boal. Ele mudou minha percepção sobre o que era possível fazer como atriz”

Antes de se tornar atriz a senhora ensinava história dos nativos americanos para crianças em peças teatrais. Como foi essa experiência? Durante a maior parte dos meus 20 anos, fiz uma turnê com show solo, me apresentando em escolas americanas. Muitas vezes eram lugares onde não havia muita população nativa, principalmente quando eu ia para a Costa Leste dos Estados Unidos. E eu ensinava sobre um ponto específico da história americana, por volta da II Guerra Mundial. A personagem que eu interpretava cresceu em uma família de curandeiros na nação Navajo e depois foi para um internato. Então, grande parte do currículo daquele projeto ensinava sobre internatos de nativos americanos, falando da política de assimilação, do idioma e da narrativa política de “mate os índios e salve o homem” que reina em muitas escolas nos Estados Unidos até hoje.

É verdade que usava a técnica do Teatro do Oprimido, criada pelo dramaturgo brasileiro Augusto Boal (1931-2009), ao ministrar workshops para jovens? Sim. Sou fascinada pelo trabalho do Augusto Boal, pela forma como ele usou técnicas teatrais na época em que atuou como vereador no Rio de Janeiro (em seu mandato pelo PT na Câmara carioca, nos anos 1990, Boal criou o conceito de “teatro legislativo”, em que apresentava artisticamente leis ao público). Isso mudou minha percepção sobre o que era possível fazer nessa profissão, sobre esse chamado para ser atriz. Cheguei a usar a metodologia do Teatro do Oprimido em workshops em universidades ou escolas onde havia uma população nativa para preencher algumas lacunas de comunicação e funcionava perfeitamente. Todas essas experiências e conhecimentos moldaram a forma como interpreto personagens, especialmente quando preciso contar histórias realmente difíceis.

Acha possível que as escolas passem a abordar a história dos povos originários com mais respeito e menos romantização da colonização? Nos últimos anos vimos o currículo escolar começar a mudar, com os alunos fazendo perguntas mais sofisticadas e esses conhecimentos se tornando um pouco mais comuns. Acredito que isso tenha sido motivado durante o governo de Barack Obama, quando houve muito mais impulso em direção a uma grade de ensino mais diversificada.

Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879

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