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O homem que combateu o crack em Nova York

Robert Stutman esteve durante 25 anos na linha de frente no combate às drogas nos Estados Unidos. Como chefe do maior escritório do DEA (agência de combate às drogas do governo americano) em todo o mundo, ele foi um dos responsáveis por acabar com a epidemia de crack em Nova York

Por Natalia Cuminale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 Maio 2016, 16h34 - Publicado em 22 jan 2012, 09h52

Hoje aposentado, Robert Stutman esteve durante 25 anos na linha de frente no combate às drogas em Nova York, nos Estados Unidos. Em meados da década de 1980, o ex-chefe do escritório do DEA (Drug Enforcement Agency – algo como Agência de Combate às Drogas) de Nova York – o maior escritório da DEA do mundo, que tem 86 escritórios internacionais, em 62 países – teve que lidar com o crack quando ainda era uma droga totalmente desconhecida no território americano. “Sabíamos muito pouco sobre o crack”, diz.

Em Nova York, a região conhecida como Alphabet City, localizada no Lower East Side, e o Bryant Park, entre as ruas 40 e 42, ambas em Manhattan, se tornaram perigosos pontos de venda de drogas. Lá, ao contrário do que ocorre no Brasil, os usuários não consumiam drogas ao ar livre – normalmente a pedra era fumada em casarões e prédios abandonados conhecidos como crack houses ou dentro dos carros.

Stutman comandou ações de inteligência policial, que incluíam infiltrar policiais entre os dependentes, para debelar a epidemia. O começo foi difícil. Entre os dependentes existiam grávidas e crianças. Mas as ações surtiram efeito – houve uma redação de cerca de 80% nas taxas de crimes em geral, em um período de 20 anos. Stutman, no entanto, até pelo ineditismo que a droga representou na época, reconhece falhas. “Não fomos atrás do crime organizado cedo o suficiente e também demoramos a perceber a dimensão que a epidemia do crack tomaria.”

Os erros e acertos da experiência americana podem colaborar para o combate a essa droga no Brasil. “É preciso tomar cuidado para não mudar a cracolândia para outra área da cidade”, diz. Em entrevista ao site de VEJA, Stutman relata o desafio de combater (e vencer) o crack em Nova York.

Por que o crack tomou conta da cidade de Nova York? Primeiro porque era uma droga extremamente barata. Antes de o crack chegar em Nova York, você precisaria desembolsar 100 dólares para comprar um pouco de cocaína. Quando o crack chegou às ruas, o preço da pedra variava entre três e cinco dólares. Em segundo lugar, o crack proporcionava uma alteração mental extremamente poderosa. Quando essa droga apareceu na cidade, os médicos nos explicavam que ela era muito mais poderosa devido à forma com era absorvida pelo organismo (fumado e não aspirado, como a cocaína). Enfim, a combinação do preço com o prazer proporcionado fez com que a droga se espalhasse rapidamente.

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Na metade da década de 80, dizia-se que o Bryant Park era um mercado de drogas ao ar livre. Quando foi o pior momento da epidemia do crack em Nova York? A explosão do crack aconteceu entre os anos de 1987 e 1988. O crack não era a droga de escolha dos Estados Unidos. Lembro que quando a encontramos pela primeira vez sabíamos muito pouco sobre ela. A primeira experiência que tivemos com o crack comercializado nas ruas foi em Nova York. Já em 1988, a droga começou a aparecer em outras cidades. O consumo cresceu durante oito anos depois disso.

Hoje, os números comprovam que Nova York é uma cidade muito mais segura que há 25 anos. Que medidas foram responsáveis por mudar essa realidade? A princípio, o Departamento de Polícia de Nova York seguiu uma estratégia de retirar as drogas das ruas de algumas áreas principais. E o que nós vimos depois disso é que só mudamos o lugar onde os traficantes vendiam as drogas. Até então, não estávamos fazendo nada para impedir a disponibilidade das drogas. Então, só estávamos mudando os lugares onde essas drogas eram vendidas. Por isso, acabamos concentrando as pessoas em um só local – foi o caso do Bryant Park e Alphabet City. Depois tentamos combinar as coisas. Em primeiro lugar, focamos em combater as organizações que estavam controlando o tráfico de drogas; em segundo, começamos a dificultar a compra da droga. Nessa época, os usuários moravam nos subúrbios e vinham para as áreas específicas de Nova York para comprar droga em seus carros. Eles nunca saíam do carro para comprar a droga, apenas se dirigiam ao local e recebiam a droga. E, nos Estados Unidos, há uma lei que se drogas forem encontradas em um carro, podemos apreender as drogas e os carros. Nessa fase, prendíamos centenas de carros. Nos primeiros três ou quatro anos não conseguíamos conter a disseminação da droga, ela continuava crescendo cada vez mais.

Em sua opinião, houve algum erro no combate ao crack em Nova York? Com certeza nós cometemos muitos erros. Não fomos atrás do crime organizado cedo o suficiente e também demoramos a perceber a dimensão que a epidemia do crack tomaria. Fizemos o nosso melhor. Mas não percebemos o poder que a droga tinha e nem o poder de destruição dela. Não percebemos que ela era muito acessível para crianças, nem que seria capaz de dominar bairros inteiros de Nova York, também não percebemos que o crack seria a única fonte de emprego em alguns locais de Nova York. Além disso, demoramos a reparar no crescimento das taxas de violência bem no início da epidemia. Olhando para trás, lembro de pessoas que disseram que nós reagimos de forma exagerada. Na verdade, penso que não reagimos de forma rápida o suficiente.

Podemos dizer que hoje Nova York está livre do crack? Não posso dizer que é totalmente livre do crack, mas a proporção do uso dessa droga é muito menor que a de outras drogas. Há crack em todas as grandes cidades dos Estados Unidos. Elas nunca sumiram completamente, mas com certeza há muito menos do que havia no passado.

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O senhor acredita que alguma outra droga causou tanta mudança social quanto o crack causou em Nova York? Não até agora. O crack atraía pessoas mais jovens, inclusive crianças, porque 100 dólares era um preço muito caro para se pagar por uma pequena porção de cocaína, ao contrário de uma pedra que pode ser adquirida por 5 dólares. Outra coisa que o crack fez – e que demoramos a perceber – é que muitas mulheres se viciaram em crack e isso foi relativamente novo para nós. Antes do crack, a maioria dos viciados eram homens. Quando as mulheres passaram a usar drogas também vimos uma grande desestruturação das famílias. Posso dizer que o crack ajudou a trazer as mulheres ao vício nas drogas. Elas usavam a droga durante a gravidez.

Alguns críticos dizem que a lei antidrogas Rockfeller criminalizava algo que era um problema de saúde pública, isso porque colocava os viciados na cadeia, em vez de dar a eles a opção de tratamento. O que o senhor pensa sobre isso? Hoje, acredito que é uma política estúpida colocar dependentes em prisões, com o único argumento de que eles são viciados. Entendo o fato de prender em razão de posse de drogas, mas eles só estão com as drogas porque são viciados. Então, atualmente, sou completamente a favor da internação compulsória. A lei do crack com certeza aprisionou mais pessoas negras. Porque o crack era a droga escolhida pela população afro-americana. Então, nós como país, sentenciamos muito mais usuários de crack à prisão do que os usuários de cocaína, por exemplo. E isso causou uma disparidade racial na questão prisional. Mas, de qualquer forma, colocar qualquer pessoa na cadeia por ser viciado é uma política estúpida. Não funciona.

Atualmente, o Brasil enfrenta uma epidemia de crack, que atinge vários estados, inclusive cidades do interior. Em São Paulo, nós temos um local chamado cracolândia, com traficantes e viciados em crack que ficam lá dia e noite. Agora, a polícia de São Paulo está tentando dispersar as pessoas que ficam na rua e prender os traficantes. O que é possível aprender a partir da experiência de Nova York? O que ocorre em São Paulo é muito parecido com o modelo americano. É preciso esclarecer um ponto. Os viciados nunca querem ir ao tratamento por vontade própria. Se você esperar que os usuários de crack decidam buscar tratamento de forma voluntária, você vai perder muito tempo. É preciso investir em programas de internação compulsória. Dar uma escolha as pessoas de ir à prisão ou ao tratamento. E é preciso investir dinheiro em tratamento. Uma das coisas que não sabíamos e que eu sei agora é que, a longo prazo, tratamento é mais barato que a prisão. Viciados em drogas não ficam melhores na prisão. Então, prendendo você só esconde o problema, porque quando eles voltarem às ruas, eles buscarão drogas novamente. Assim você não resolve o problema. É preciso inclui-los em um programa de tratamento. Obviamente, eu não tenho nenhum problema em prender traficantes. Mas é preciso tomar cuidado para não cometer o mesmo erro que nós cometemos. Agora, vocês têm a cracolândia e é preciso tomar cuidado para não simplesmente mudar ela para outra área da cidade.

Onde isso aconteceu em Nova York? Havia uma área chamada Alphabet City, na região Lower East Side, de Nova York. Não era uma área particularmente pobre, era mais uma área de classe média baixa, talvez. No início, tudo o que o departamento de policia estava fazendo era tirar as pessoas dali, e levando a droga para outros bairros. O tráfico simplesmente mudava de lugar. E é isso que é preciso tomar cuidado. Você não deve lidar apenas com os sintomas das ruas. É preciso olhar para o problema de uma forma maior, há o problema do usuário e do traficante. E o problema do usuário não melhora com cadeia, mas sim com tratamento.

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