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Licitações: o que eles têm que nós não temos

Enquanto Brasil discute mudanças em obras públicas, países como os Estados Unidos adotam medidas para garantir conclusão de projetos

Por Mirella D'Elia
1 Maio 2011, 10h32

Márcio Pestana, advogado, especialista em direito administrativo: “A grande virtude da Copa e dos Jogos Olímpicos é ter tirado a administração pública brasileira da inércia. É a primeira vez que faremos licitações de obras com prazo certo para terminar”

A Constituição de 1988 diz que a atuação da administração pública deve ser norteada por princípios básicos: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. É o que está escrito no artigo 37. O mesmo artigo diz que, salvo exceções, obras, serviços e compras públicas devem ser feitos por meio de licitações.

Aprovada em 1993, a Lei 8.666 regulamenta o que diz a Constituição e dita normas para os processos licitatórios. Reforça, pois, o conceito de eficiência das compras públicas – fundamento do bom uso do dinheiro público. Uma licitação deve assegurar a idoneidade, a isonomia e a competitividade para que a compra seja feita da forma mais vantajosa para a administração pública e para o bolso do contribuinte. É por isso que da licitação se abre mão apenas em casos de urgência e calamidade pública.

Regras são regras. Mas, no Brasil, desde que a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 entraram em cena, a discussão sobre mudanças para a contratação de obras públicas voltou à tona. Uma das maiores dúvidas é se há infraestutura robusta o suficiente para abrigar competições, atletas e público. A situação dos aeroportos e a construção e reforma de estádios são alvo de grande preocupação – admitida pelo governo Dilma Rousseff.

Propostas – Apesar do estardalhaço em torno da questão, o debate não é propriamente novo. Há no Congresso quase 200 propostas para alterar a Lei de Licitações – 170 na Câmara e 25 no Senado, segundo levantamento feito pelas duas casas a pedido do site de VEJA. Desde 2007, para apressar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o governo tenta emplacar uma delas (PLC 32/07). O texto prevê medidas como a inversão das fases de licitação. (veja quadro abaixo)

Enviado em caráter de urgência ao Congresso, o projeto acabou, como tantos outros, empacado. Há pontos que não agradam a setores da construção civil, como a ampliação do uso dos pregões. Para ganhar tempo, o governo enxertou numa medida provisória (a MP 521) propostas para alterar as regras para licitações. As medidas, compiladas no que se batizou de Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), serão válidas apenas para a Copa de 2014 e para as Olimpíadas de 2016, além da Copa das Confederações, em 2013.

A intenção do governo é votar a MP até 10 de maio. Paralelamente, propôs incluir na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2011alterações que diminuem o poder de fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU). As iniciativas causaram reação forte da oposição, que, apesar de em posição minoritária, promete obstruir as votações.

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Avanço – Enquanto, no Brasil, ainda se discutem mudanças nas regras do jogo, outros países têm cenário bem mais avançado no combate ao desperdício do dinheiro público e ao fantasma das obras inacabadas. Não é de hoje que os Estados Unidos adotam largamente a prática conhecida como performance bond. Nada mais é do que um seguro que cobre integralmente o valor de uma obra. Se a construtora falir, for declarada inidônea ou não tiver condições de concluir o projeto, caberá à seguradora terminar o serviço.

Alguns países da Europa criaram códigos de ética para funcionários públicos para combater a corrupção e comitês de arbitragem para atender denúncias e com poder para anular contratos e aplicar multas em caso de irregularidades. Na Inglaterra, que abrigará as Olimpíadas de 2012, após problemas como a elevação de custos de contratos, o governo implementou reformas dos contratos públicos, basicamente através da promoção da celebração de contratos por meio de parcerias público-privadas (PPS).

Como se vê, exemplos de boas práticas vindos de fora não faltam. Por aqui, a adoção dos performance bonds chegou a ser discutida em 1993, quando a Lei de Licitações foi aprovada. Sem sucesso. A avaliação política feita na época foi que o mercado de seguradoras teria poder excessivo.

Filtro – A diferença entre o que é feito no Brasil e nos Estados Unidos é abissal. Enquanto aqui as empresas têm de apresentar aos órgãos públicos atestados de acervo técnico para comprovar sua qualificação e, como garantia do contrato, construtoras têm de pagar apenas 5% do valor da obra, lá, além da garantia ser de 100% do valor do projeto, o crivo é feito pela seguradora. Nesse meio tempo, criou-se no Brasil um mercado paralelo e ilegal de venda de certificados.

“O performance bond seria um filtro para a administração pública. A seguradora, além de exigir eficiência técnica, participaria também da fiscalização da obra”, diz André Kuhn, mestre em engenharia civil pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

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“Isso seria fundamental para garantir que empresas idôneas participem de processos licitatórios”, concorda Aldo Dórea Mattos, engenheiro civil, advogado e consultor em gerenciamento de obras. “O crivo para participar de uma obra deixaria de ser focado no que a empresa já fez para ser a garantia de que ela vai fazer”.

Na opinião de especialistas ouvidos pelo site de VEJA, as maiores deficiências do cenário de contratação de obras públicas são a baixa qualidade dos projetos e a fiscalização precária de obras. “O que acontece hoje é que se parte de um projeto com muitas indefinições e, ao longo da obra, é preciso mudá-lo”, observa Arlindo Moura, presidente da Comissão de Obras Públicas da Câmara Brasileira de Indústria da Construção (CBIC). “Isso gera novos valores e muitos questionamentos”.

Também falta planejamento. Nos Estados Unidos e na Alemanha, por exemplo, se trabalha com um horizonte mais amplo. No Brasil, os órgãos públicos sofrem com a ingerência política. “É tudo na base do improviso: os projetos são mal feitos e as deficiências são sanadas no decorrer da obra, o que acaba aumentando os custos”, afirma Dórea Mattos. “Muitas vezes, as empresas ganham a licitação por valores baixos, não terminam a obra e o governo não tem como ir atrás”.

Para os especialistas, de nada adianta mudar temporariamente as regras do jogo – o que pretende o governo com a MP que deve ser votada nas próximas semanas -, se não houver uma mudança estrutural. “A grande virtude da Copa e dos Jogos Olímpicos é ter tirado a administração pública brasileira da inércia”, diz Márcio Pestana, doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor de direito administrativo da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). “É a primeira vez que faremos licitações de obras com prazo certo para terminar. Se as obras não saírem do papel vai ser um fiasco”. É esperar para ver o placar desse jogo.

Leia abaixo o que diz o PLC 32/07 e os bons exemplos que vêm de fora:

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Projeto quer alterar regras para licitações

Está em tramitação no Congresso Nacional desde 2007 projeto para alterar a Lei 8.666, de 1993 – que dita as regras para licitações no Brasil. O PLC 32/2007 foi proposto no governo anterior para acelerar obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A matéria passou pela Câmara e aguarda votação no plenário do Senado. Depois, voltará à Câmara para nova votação antes da sanção presidencial

Conheça alguns dos principais pontos em discussão

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Pregão

» Como funciona hoje

O pregão, embora não obrigatório, é amplamente utilizado pela administração pública direta e indireta em compras e na contratação de serviços padronizados. É um tipo de licitação criado pela Lei 10.520, de 2002. Prevê que a disputa seja feita por meio de proposta e lances em sessão pública presencial ou à distância, na forma eletrônica.

» O que diz o projeto

O pregão torna-se obrigatório nas licitações para a contratação de obras, serviços ou compras do tipo “menor preço” com valor inferior a 3,4 milhões de reais e é facultativo em contratações com preço superior

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Inversão de fases nas licitações

Como funciona hoje

Em quase todos os tipos de licitação previstos na Lei 8.666/1993, com destaque para concorrências públicas (grandes contratações), antes da abertura das propostas de preço, todas as concorrentes têm a documentação analisada. São checados requisitos como qualificação técnica e econômico-financeira; habilitação jurídica e regularidade fiscal. No caso dos pregões, as propostas são analisadas antes. Somente o melhor colocado tem a documentação checada, em uma fase posterior

O que diz o projeto

A ordem é invertida, como no pregão. Primeiro, abrem-se as propostas. Depois, a documentação da melhor qualificada e, se necessário, das demais, até se chegar à vencedora. No caso de obras e serviços de engenharia, emenda estabelece um meio termo: a abertura das propostas só ocorre após a verificação das qualificações técnica e econômico-financeira. No caso de obras e serviços de engenharia, emenda estabelece um meio termo: a abertura das propostas só ocorre após a verificação das qualificações técnica e econômico-financeira. Após a abertura das propostas, são examinados os documentos relativos à qualificação jurídica e regularidade fiscal da licitante detentora da melhor proposta

Divulgação pela internet

Como funciona hoje

A publicação do aviso contendo o resumo de um edital de licitação precisa ocorrer no Diário Oficial e em um jornal diário de grande circulação

O que diz o projeto

Pretende substituir a publicação do aviso em um jornal por veiculação dele em sites oficiais da administração pública da União, estados, municípios e Distrito Federal

Projetos de obras

Como funciona hoje

Obras e serviços somente poderão ser licitados quando houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório

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O que diz o projeto

Obras e serviços somente poderão ser licitados quando houver a aprovação dos projetos básico e executivo pela autoridade competente. Os projetos devem estar disponíveis para exame dos interessados em participar do processo licitatório

Meio ambiente

Como funciona hoje

Não condiciona a concessão de licença prévia ambiental para tocar obras e serviços nem estabelece condições para a madeira que é usada em projetos

O que diz o projeto

Obras e serviços somente poderão ser licitados se existir licença prévia ambiental, quando cabível. Também propõe que a madeira usada em obras ou serviços seja oriunda de reflorestamento ou de plano de manejo florestal sustentável aprovado por órgão competente

De fora, os bons exemplos para tratar de obras públicas

Estados Unidos

A construtora apresenta um seguro que cobre integralmente o valor do contrato e garante ao contratante a conclusão da obra, o performance bond . No caso de falência da empresa ou incapacidade para desempenhar os serviços, o órgão público aciona a seguradora, que assume a responsabilidade pelo término da obra nos termos acertados em contrato. Ao receber o performance bond, a administração pública assume que se trata de alguém idôneo e competente para executar o serviço. Quem cobra os atestados de acervo técnico, que comprovam a capacidade técnica da empresa, é a seguradora.

No Brasil, a Lei 8.666/93 faculta aos órgãos públicos cobrar, além de atestados de acervo técnico, 5% do valor da obra como forma de garantia do contrato. O pagamento pode ser feito por meio de uma caução (em dinheiro ou títulos da dívida pública) ou por meio de um seguro-garantia. A diferença é que o contratado é quem escolhe a modalidade de pagamento é o contratado e não administração pública. Por isso, o seguro raramente é a modalidade escolhida

Japão

O processo licitatório japonês é aberto e competitivo. Semelhante ao que ocorre no Brasil, são exigidas garantias contratuais para a execução de obras. A diferença é que, no Japão, elas se dividem em dois grupos: garantia monetária, em que o contratado escolhe entre fiança bancária, caução ou performance bond, e garantia de obra, em que é obrigatório optar pelo performance bond.

Europa

Diversos países apostaram em sistemas modernos de licitações para garantir transparência em aquisições e contratos. A União Européia e a Organização Mundial do Comércio exigem imparcialidade para atender a reclamações e supervisionar processos licitatórios

Para combater a corrupção, alguns países desenvolveram códigos de ética para funcionários públicos. É o caso da Polônia. A Hungria criou um comitê de arbitragem para atender denúncias e com poder para anular contratos e aplicar multas em caso de irregularidades. No projeto em discussão no Brasil, a arbitragem pode ser prevista em edital para resolver disputas

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