Para o bem da democracia e alívio geral da União Europeia, Emmanuel Macron conquistou uma relevante vitória ao se reeleger presidente da França, o primeiro a conseguir isso em vinte anos. Seu triunfo, no entanto, pode ser visto por dois ângulos. No atacado, ao derrotar a ultradireitista Marine Le Pen por 58% a 42% dos votos, Macron impediu que o destino da França fosse parar nas mãos do populismo excludente, rançoso e intolerante que grassa mundo afora. “A reeleição foi crucial para expor os limites do populismo e o fato de que a radicalização ainda assusta a maioria da população”, diz Elizabeth Carter, especialista em política europeia da Universidade de New Hampshire. No varejo, porém, a disputa na França deixou patente o encanto que as ideias radicais despertam na sociedade e sua contrapartida, a decadência da moderação política tal qual a conhecíamos — um fenômeno que atravessa fronteiras e está mudando a feição das mais sólidas democracias.
Quando surgiu, nos anos 1970, a xenófoba e revisionista Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen, o pai de Marine, era vista como uma vergonha para o país. Agora rebatizado de Reagrupamento Nacional e comandado por uma espécie de “Marininha paz e amor” — embora permaneça tão anti-imigrantes, tão anti-União Europeia e tão pró-Vladimir Putin quanto antes —, o partido, que já havia chegado ao segundo turno em 2017, firmou-se como força política relevante. A abstenção, em uma população que adora votar, chegou a quase 30%, incluindo-se aí boa parte dos eleitores de Jean-Luc Mélenchon, o candidato da extrema esquerda que por pouco não atropelou o placar no primeiro turno. Mais: calcula-se que 45% dos que votaram em Macron só o fizeram, de nariz tapado, porque não havia outra escolha.
O crescimento da ultradireita, na França como em outros países, se dá entre os jovens e na classe média rural, dois contingentes que se sentem empobrecidos e abandonados — os primeiros, pela falta de empregos e de perspectivas; os demais, pela alta de preços, queda de rendimentos, piora dos serviços públicos e uma longa lista de queixas contra os privilégios da “elite cosmopolita”. Focando seu discurso exatamente na inflação e na fama de Macron de trabalhar para os ricos, Marine — que, entre outras sandices, defende a expulsão de imigrantes para combater o desemprego — não ganhou, mas tirou seu partido da vala das ideologias que as pessoas sérias desprezam.
Macron é, ele mesmo, fruto do rearranjo geopolítico da última década: em 2017, sem nunca ter tido cargo eletivo, venceu Marine com 66% dos votos e levou seu recém-criado partido, Em Marcha! (assim, com exclamação), à maioria no Parlamento. Seu discurso avesso à “velha política”, de um lado, e as falas radicais da direita e da esquerda, de outro, juntaram-se para relegar as legendas tradicionais à insignificância. Na eleição deste ano, republicanos e socialistas, os dois pêndulos que movimentaram a França do pós-guerra, não chegaram, juntos, a 5% dos votos. A derrocada é ampla, geral e irrestrita. Na Itália, a social-democracia e o Partido Socialista derreteram, abrindo caminho para uma direita furiosa que integrou seguidos governos de coalizão, na pessoa do radical Matteo Salvini, e criou tamanha instabilidade institucional que a saída foi buscar um técnico para cuidar do governo: o atual primeiro-ministro, Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, nunca concorreu a cargo público e nem sequer é filiado a algum partido. Até agora, está funcionando.
No Reino Unido, os partidos Trabalhista e Conservador continuam a dominar a política, mas tiveram de se reinventar — uma reforma de olhos voltados para os extremos. A ala mais furiosamente nacionalista dos conservadores, constituída por uma geração de políticos (entre eles Boris Johnson) disposta a virar a mesa, promoveu um racha que, para surpresa geral, desembocou no Brexit, a saída do reino da União Europeia. Os trabalhistas, por sua vez, deram voz à esquerda radicalizada liderada por Jeremy Corbyn, uma manobra desastrada que minou sua popularidade. A reformulação interna dos partidos tradicionais chegou aos Estados Unidos, onde republicanos e democratas passam por profundas modificações. Enquanto a bazófia e a truculência do trumpismo tomam conta do Partido Republicano, hoje debruçado sobre as pautas de costumes mais reacionárias, no Partido Democrata a ascensão de jovens e combativas deputadas empurra o debate para a esquerda, arrepiando eleitores tradicionais. “Na velha ordem era possível achar o caminho do meio, mas os problemas trazidos pela globalização estão sufocando essa trilha”, afirma Thomas Whalen, historiador da Universidade de Boston.
Como a busca do novo e a insatisfação com a velha política não são estanques, a direita que chegou ao poder também já dá sinais de desgaste. Na Eslovênia, que também acaba de ter eleições, o primeiro-ministro direitista Janez Jansa não conseguiu o quarto mandato. Mesmo destino teve o bilionário populista Andrej Babis na República Checa, no ano passado. Em 2020, Joe Biden, na linha “dos males, o menor”, derrotou Donald Trump. Agora foi Macron quem se interpôs no caminho do autoritarismo e da intolerância. “Não podemos esperar que a razão sempre prevaleça. Mas, ao celebrar desmandos do passado que julgam gloriosos, os populistas espantam aqueles interessados em um futuro melhor”, diz Peter Hall, professor do Centro de Estudos Europeus em Harvard. É um sopro de bom senso a que se apegar nestes tempos tão estranhos e imprevisíveis.
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787