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Ultranacionalismo ofusca festa dos trinta anos da queda do Muro de Berlim

Em 9 de novembro de 1989, a fulminante e inesperada derrubada da barreira espalhou alegria e otimismo pela Europa, mas cicatrizes persistem

Por Ernesto Neves Atualizado em 30 jul 2020, 19h36 - Publicado em 8 nov 2019, 06h00

Soviete Supremo, URSS, Guerra Fria, Cortina de Ferro. É difícil imaginar que esses termos tão fora de moda fossem peças­-chave da engrenagem que movimentava o mundo até meros trinta anos atrás, quando a máquina supostamente invencível da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se espatifou no Muro de Berlim. A barreira erguida para conter cidadãos dentro dos limites do férreo domínio comunista virou, na noite fria de outono de 9 de novembro de 1989, uma peneira por onde famílias inteiras vazaram, sem nem acreditar direito no que estava acontecendo. A queda do muro que separava não só a capital, mas simbolicamente a Alemanha toda, detonou um sublime otimismo na Europa: livres de ditadores, os países do Leste poderiam se mesclar ao tecido democrático do resto do continente.

O COMEÇO - A construção da barreira: em um dia, o país foi dividido ao meio (Rudolf Dietrich/Ullstein Bild/Getty Images)

Assim foi, por um tempo. No aniversário de dez anos da queda do muro, em 1999, os ex-países comunistas negociavam a adesão à Otan, o tratado de defesa do Atlântico Norte, avanço significativo para quem até outro dia dormia com o inimigo (sete entraram em 2002). Na festa dos vinte anos, em 2009, oito festejavam sua aceitação na União Europeia, com acesso a créditos e investimentos. Hoje, porém, a marca mais forte é a preocupação com a onda populista e xenófoba que varre boa parte da Europa e está polindo com especial vigor as insatisfações e ressentimentos acumulados no Leste. Nesse processo, a fatia que corresponde à República Democrática Alemã (RDA) é terreno fértil para o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD), o segundo mais votado em três dos seis estados da região. “Os alemães do Leste não foram recebidos de braços abertos. Na verdade, eles é que tiveram de abraçar os valores do outro lado, como globalização, multiculturalismo e imigração. Esse foi o maior choque, e o mais subestimado”, disse a VEJA o historiador britânico Timothy Garton Ash, autor de Nós, o Povo e A Lanterna Mágica, sobre a reunificação alemã. Ash está em Berlim “para ver a festa dos trinta anos”.

A queda do muro foi uma explosão de êxtase popular, mais ainda por ter sido totalmente inesperada. A Alemanha Oriental (como, de resto, quase todo o mundo comunista) passava por uma onda de protestos nas ruas. Pressionado, o governo da RDA resolveu afrouxar um pouco o controle dos postos de checagem ao longo da muralha, guardados por soldados armados. Um burocrata foi à TV para explicar, ao vivo, o novo decreto, e alguém perguntou quando a medida entraria em efeito. Atrapalhado, ele disse: “Acho que imediatamente”. Os berlinenses do Leste deixaram suas casas e foram ver se era verdade. Em minutos, milhares começaram a cruzar as saídas, diante dos guardas sem ação. Às 23h30, estes desistiram de pedir documentos. E as duas Berlins se encontraram. Pelo resto da noite e nos dias seguintes, a barreira, erguida em um domingo de 1961 (primeiro com arame farpado, depois com concreto), foi tomada pela multidão em festa. O muro só começou a ser efetivamente derrubado dois dias depois, e durante meses se ouviu o barulho das máquinas de demolição e dos martelos dos alemães que queriam guardar (ou vender) seu pedacinho de concreto. Na sequência, a Cortina de Ferro se abriu em outras partes e, em 1991, a URSS virou sigla do passado.

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O BEIJO – Brejnev, líder soviético, e Honecker, da RDA: a pintura do russo Vrubel é vista hoje na parte que sobrou do muro (Fabrizio Bensch/Reuters)

A economia alemã unificada trouxe melhorias, mas a desigualdade entre os dois lados persiste (veja o quadro). Mais de 1 milhão de alemães orientais mudaram-se para a banda capitalista, em sua maioria jovens e mulheres que deixaram o marido em busca de vida melhor. Como as indústrias permanecem majoritariamente na parte ocidental (das 500 maiores, só dezesseis estão no Leste), os empregos escassearam, sem a contrapartida do colchão de estabilidade do comunismo. Resultado: a população, sobretudo masculina, foi acumulando mágoas e preocupações. A crise migratória de 2015, que inundou a Europa de estrangeiros, insuflou o sentimento de que os refugiados eram mais bem tratados do que esses alemães — uma bandeira do AfD. Na quarta-feira 30, a cidade de Dresden, na Saxônia, decretou estado de emergência devido à frequência de marchas neonazistas. Até a chanceler Angela Merkel, que viveu na Alemanha Oriental e é pouco dada a tocar no assunto, declarou recentemente que a reunificação foi concluída mas “a unidade é um processo permanente”.

O sentimento de serem europeus de segunda classe, pouco respeitados e com menos chance de progresso, permeia uma ampla parcela das populações que viveram sob o comunismo. Na Polônia, regida por populistas, o encolhimento da agricultura estatal fez a mão de obra jovem migrar em massa — hoje há 800 000 poloneses no Reino Unido. Mais de 20% dos búlgaros deixaram o país. Da Romênia, 3 milhões foram embora. O caso mais grave de nacionalismo extremado e populista se dá na Hungria: em seu terceiro mandato, o primeiro-ministro Viktor Orbán minou o Judiciário e o Legislativo e controla os meios de comunicação. A xenofobia é combustível especialmente incendiário no Leste Europeu, uma região que, durante o longo isolamento do domínio soviético, pouco conviveu com as diferenças étnicas, religiosas e culturais trazidas por imigrantes. “A onda nacionalista é acompanhada não só de um discurso muito violento, mas também de atos de agressão e até de assassinatos, o que põe a democracia em risco”, alerta Daniel Habit, professor da Universidade Ludwig­-Maximilians, em Munique. Uma perspectiva sombria, que embaça neste 9 de novembro a celebração dos trinta anos do dia em que o mundo mudou para melhor, buscando algum oxigênio democrático.


Uma volta ao passado na Berlim moderna

SINAL – Ampelmann: o símbolo do Leste virou cult (Fabrizio Bensch/Reuters)

A toda hora em Berlim se tropeça em reminiscências do muro que rachava a cidade ao meio. Do sólido paredão de concreto sobraram trechos convertidos em telas pelas mãos de artistas do mundo inteiro, além de uma coleção que virou um museu a céu aberto daqueles tempos de Cortina de Ferro e uns fragmentos miúdos (vai saber se são mesmo da muralha original) vendidos a 1 euro. Podem-se visitar até túneis escavados por quem tentava escapar para o Oeste. Mas o curioso passeio pelo que restou da República Democrática Alemã (RDA) — criada em 1949 sob a batuta da União Soviética e dissolvida oficialmente em 1990 para ser incorporada à banda capitalista — extrapola, e muito, os limites desse palpável símbolo da Guerra Fria. Quase tudo foi reembalado, claro, para servir de cenário para selfies e mover um animado turismo.

Quem busca uma legítima mostra da arquitetura stalinista não pode perder a Avenida Karl Marx, onde os prédios idênticos de um lado e do outro têm proporções monumentais, no estilo do que se via em Moscou. Os bons apartamentos, que abrigavam o alto escalão do Partido Comunista, ficavam ali, com calefação e elevador, artigos raros à época. Ainda se encontra lá o café Sibylle, onde vale dar uma chance à versão comunista da Coca-Cola, a Vita Cola. Às margens do Rio Spree está o sempre lotado Museu da República Democrática, que pro­move uma imersão no modo de vida da RDA com direito a suvenires como um busto de Marx que é (atenção para a ironia) cofrinho. O mais vendável símbolo daqueles dias é o Ampelmann, homenzinho que até hoje aparece nos sinais de trânsito da ala Leste, em verde ou vermelho. Surge também em roupas, brinquedos e badulaques inflacionados pela moda. Como era típico de países do lado comunista, altos prédios despontam como demonstração de poder. Com seus 368 metros, a Torre de TV é cartão-postal desta Berlim que criou até um termo para a revisita ao passado: Ostalgie, junção de Ost (Leste) e Nostalgie (nostalgia). Tudo para turista ver.

Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660

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