Por que mulheres só hoje conquistam direito de dirigir na Arábia Saudita?
Um dos países mais restritivos do mundo para as mulheres começa a flexibilizar suas leis visando a inserção internacional
A partir de hoje, mulheres terão o direito de dirigir na Arábia Saudita, o único país no mundo que ainda possuía esta restrição. Com uma proposta de modernização do país, o rei Salman bin Abdulaziz Al Saud, anunciou mudanças significativas no conservador e islâmico reino saudita, entre elas, a instalação do primeiro cinema do país, a permissão para mulheres frequentarem estádios de futebol e, a principal delas, a concessão de licença de direção às sauditas. Apesar da ampla aprovação à medida, o principal questionamento em relação a ela é: afinal, porque a mudança agora?
A Arábia Saudita é um dos países que mais restringe a liberdade feminina –– mesmo quando comparados a seus vizinhos do Oriente Médio. O motivo está na interpretação quase literal da Sharia, a lei islâmica. Embora não haja no Alcorão um texto que proíba as mulheres de dirigirem, a ausência de citação ao tema é interpretada como um sinal de que aquilo não deve ser permitido. Segundo as leis do país, os direitos das mulheres sauditas são largamente dependentes do consentimento de parentes próximos masculinos.
A “segregação de gênero” é aplicada no país segundo a interpretação saudita da Sharia e, como consequência, as mulheres só podem frequentar certos espaços públicos mistos quando acompanhadas por um homem da família –– normalmente pai, irmão, marido ou filho. Vestimentas que cubram a maior parte do corpo também são obrigatórias tanto para homens quanto mulheres. Para elas, a vestimenta mais comum em público é a abaya, que deixa à mostra apenas os olhos e as mãos.
Embora o veto que existia até hoje para que mulheres pudessem dirigir não estivesse escrito em qualquer lei do reino, as normas sociais envolvendo as limitações públicas impostas a elas serviam de empecilho para a concessão de carteiras de motoristas a elas. Entre as justificativa mais comuns para a denegação do direito estavam o fato de que dirigir exige que o rosto esteja descoberto, que a mulher acabaria podendo sair mais vezes de casa, que elas poderiam entrar em contato com homens desconhecidos em caso de acidentes de trânsito, além da própria erosão da lógica da segregação de gênero. Mulheres pegas dirigindo geralmente eram levadas para interrogatório e assinavam um documento se comprometendo a nunca mais dirigir. Porém, em 2011, uma mulher de Jeddah que foi flagrada dirigindo foi condenada a receber dez chibatadas.
Movimento pelo direito de dirigir
Desde os anos 1990, movimentos sociais buscavam o direito de mulheres dirigirem no país. Naquela década, um protesto com mais de 40 mulheres que dirigiram pelas vias públicas de Riad (a capital da Arábia Saudita) terminou com essas mulheres presas e com seus passaportes confiscados, muitas delas também perderam o emprego em decorrência do ato.
Já em 2008, as mulheres realizaram uma petição e entregaram ao rei Abdullah pedindo o direito de conduzirem veículos, sem sucesso. No mesmo ano, no Dia Internacional da Mulher, a ativista pelo direito das mulheres sauditas, Wajeha al-Huwaider, gravou um vídeo dirigindo por uma estrada rural ––onde mulheres podem dirigir exclusivamente para fins de subsistência, assim como no deserto–– no qual clamava pelo direito universal feminino de condução de veículos em todo o reino. Wajeha juntamente com Manal al-Sharif se tornaram símbolo da causa.
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Por diversas vezes esses movimentos ativistas foram suprimidos pelo governo, que ameaçava não só as mulheres que participavam dos protestos, mas todos aqueles que as apoiavam. A mudança era, portanto, inesperada e causou surpresa ao ser anunciada.
Modernização da Arábia Saudita
A Arábia Saudita possui forte dependência econômica do petróleo. A baixa nos preços do commodity tem obrigado o país a buscar outras formas de sustento. Por conta disso, o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, apresentou o Saudi Vision 2030, um projeto de modernização do reino que visa obter renda através do entretenimento, do turismo e da inserção internacional –– nos moldes da modernização realizada pelos Emirados Árabes Unidos e pelo Qatar nas últimas décadas.
“Nossa nação possui fortes capacidades de investimento, que aproveitaremos para estimular nossa economia e diversificar nossas receitas”, diz o texto do projeto. “Nosso país é rico em seus recursos naturais. Não dependemos apenas do petróleo para nossas necessidades energéticas”.
Essa proposta de modernização com objetivo de inserção internacional foi a força motriz que levou a permissão de conduzir para as mulheres do reino árabe, segundo explica a mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Claudia Santos. “O príncipe respalda sua decisão em um aspecto econômico. Ao deixar as mulheres dirigirem ele não menciona os esforços das mulheres que lutaram tantos anos por isso, apesar do movimento na Arábia Saudita ser relativamente antigo. Ele pensa nos ganhos econômicos que isso trará, principalmente com mulheres trabalhando com isso. Além de também ser uma pressão internacional”.
A pressão internacional pela melhora na questão de igualdade de gênero no país teve início nos movimentos de ativistas. O envio de petições ao rei e os protestos com mulheres dirigindo chamou a atenção da comunidade internacional para diversas práticas sauditas que violam as convenções de direitos humanos.
De acordo com a ativista de direitos das mulheres na Arábia Saudita, Hala Al Dosari, tanto a atenção atraída por esses movimentos quanto o projeto de modernização e busca por investimento externo do príncipe contribuíram para a mudança mais emblemática na Arábia Saudita até o momento. A flexibilização dos direitos femininos é uma necessidade se o país realmente quiser se lançar na esfera internacional, segundo Hala.
“O reino quer mostrar que ele é o agente e líder da mudança. Ele não quer que ninguém critique ou desafiei seu dever, então ele controla essa mudança”, explica. Hala conta que existe um esforço para tentar silenciar todos aqueles que exigem mudanças na sociedade, incluindo as ativistas, enquanto o governo conduz a modernização. “Há uma mensagem à comunidade saudita de que o ativismo não funciona. Então, a lógica é de que se a mudança tem que acontecer, ela virá apenas do [Governo do] reino”.
Hala enfatiza que apesar do fim da proibição estar ocorrendo, há poucos dias 17 mulheres sauditas foram presas sob a acusação de traição e tentativa de desestabilização do reino. O motivo real: protestos pela igualdade de direitos. Entre as detidas estão manifestantes conhecidas e que participaram dos movimentos de rebeldia ao dirigirem nas ruas da Arábia Saudita.
Muito longe da igualdade de gêneros
Ainda que a permissão de condução seja uma grande conquista, a quantidade de proibições sobre as mulheres continua enorme. Outra grande luta local é pelo fim da obrigação do chamado “guardião”. Segundo a lei, toda mulher necessita de um guardião do sexo masculino que seja um parente próximo e que lhe conceda autorização expressa para praticamente todo ato.
“A igualdade de gênero está muito longe. Nós não temos igualdade sequer dentro da própria família. Um marido, um pai ou um filho tem mais controle sobre a vida e as escolhas de uma mulher do que ela própria”, afirma Hala. “A mulher não pode viajar, não pode tirar documentos, não pode obter educação, ou mesmo sair de sua casa sem a permissão do guardião. As mulheres ainda têm muito a conquistar porque sua vida ainda é muito controlada pelos homens de sua família”.
A existência de guardiões e a restrição à interação entre os gêneros priva as mulheres de acessarem locais públicos. Toda casa e todo estabelecimento possui entradas distintas para homens e para mulheres. Pior: elas só podem acessar certos espaços quando acompanhadas de um membro da família. Restaurantes, por exemplo, possuem áreas segregadas só para homens desacompanhados e só para famílias –– único local onde as mulheres podem se sentar desde que acompanhadas de seu guardião.
Até há pouco, uma mulher precisava da autorização de seu guardião inclusive para realizar procedimentos cirúrgicos ou hospitalares. Em 2009, a mesma ativista que gravou o vídeo dirigindo, Wajeha al-Huwaider, desafiou a lei ao viajar internacionalmente sem autorização de um guardião, incitando outras mulheres a fazerem o mesmo. Petições com milhares de assinaturas já foram entregues ao reino para banir a existência dos guardiões. O governo saudita nega que haja um sistema de tutela masculina exista no país.
Claudia Santos, a cientista política da UFPR, chama atenção para a necessidade de uma mudança cultural mais do que jurídica. “A ONU já havia pedido para a Arábia Saudita rever essa situação [das mulheres não poderem dirigir] e também das tutelas. Então, para além de uma lei, é necessário conjuntamente um processo de conscientização da sociedade sobre o meio de convívio das mulheres. É um aspecto importante ele ter proposto a lei, mas também é importante essa conscientização cultural que não perpetue essas situações de preconceito, discriminação e machismo”.