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“O discurso do ódio se dissemina com a pandemia”, diz Fernando Lottenberg

"É urgente criar mecanismos para coibir isso", afirma o presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib)

Por Fernando Lottenberg*
19 jun 2020, 06h00

Libelos de que a Covid-19 seria causada por um “vírus chinês” ou que Israel e os judeus estariam espalhando o Sars-CoV-2 pelo mundo aparecem, com indesejável frequência, em posts e falsas notícias em vários países, muitas vezes associados a chavões clássicos, como “isso tudo está acontecendo por causa dos interesses dos Rothschild ou de George Soros”, que seriam donos de laboratórios, prontos para tirar proveito da crise, produzindo remédios e vacinas. A única reação que esses ataques não provocam é surpresa.

A intolerância de toda natureza e contra vários povos acompanha a história da humanidade. Nem seria preciso lembrar, por exemplo, das atrocidades cometidas contra os judeus ao longo dos tempos, quase sempre sem punição e que, justamente pela impunidade, culminaram na maior de todas elas — o Holocausto: 6 milhões de inocentes, ao lado de outras minorias, foram exterminados no coração da Europa, em pleno século XX. Pessoas que nada fizeram para ter esse destino, além de ter nascido em uma determinada família ou localidade. Em decorrência dessas circunstâncias, as comunidades judaicas ao redor do mundo tornaram-se especialistas em ser alvo do discurso do ódio e das fake news. Hoje, está bem claro que esse tipo de praga que grassa no ambiente virtual causa imensos danos, não raramente desaguando em violência física na vida real.

O principal condutor dessas correntes são as plataformas de comunicação digitais. Turbinadas por exércitos de robôs e protegidas pelo anonimato, as redes sociais aglutinaram, revigoraram e empoderaram os extremistas de forma inédita e com elevado grau de eficiência. O racismo e qualquer espécie de sectarismo encontraram na tecnologia um motor. Alguns ataques contra sinagogas e mesquitas, com dezenas de mortes, tiveram seu início com transmissões ao vivo, nas redes. Há anos se fala disso, sem que a intolerância tenha sido efetivamente freada. Em razão do curso dos acontecimentos, é necessário que as redes sociais sejam capazes de evitar a propagação do ódio, com suas terríveis consequências. É uma tarefa árdua, mas inescapável. Empresas como Twitter e Facebook, entre outras, já alcançaram capacidade financeira e grau de maturidade tecnológica suficientes para restringir, por meio de inteligência artificial, conteúdos discriminatórios, como faz o YouTube no combate à violência extrema e à pornografia infantil.

E que não se diga que coibir a intolerância, através dos mecanismos que a disseminam, seja censura. Não queremos combater a diversidade de ideias. Mas é preciso lembrar que a liberdade de expressão, conquista democrática inscrita na Constituição de 1988, não se confunde com o discurso do ódio ou com a pregação da violência, como já vem decidindo há anos o Supremo Tribunal Federal. O rádio e o cinema eram as novas tecnologias nos anos 1930, e os nazistas exploraram esses meios com eficiência letal. O poder das redes neste século XXI é muitas vezes maior que o daquelas plataformas. Atuam praticamente sem controle social, diferentemente do que ocorre com as mídias tradicionais.

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“É frustrante observar como atores políticos usam e abusam de comparações equivocadas com o nazismo”

Mesmo antes de o novo coronavírus se tornar o último pretexto para comportamentos racistas, ataques de ódio já vinham crescendo neste planeta polarizado. Lideranças judaicas e de outras religiões, em todo o mundo, têm se esforçado em denunciar e combater essa ressurgente onda de intolerância, em que a realidade se desenrola sob uma óptica maniqueísta e distorcida. Mas muitos não querem ver, não querem ouvir, ocupados que estão em estigmatizar adversários.

É frustrante observar como atores políticos, especialmente em nosso país, usam e abusam de comparações equivocadas com as perseguições da época do nazismo, apenas para conquistar posições em disputas, sem nenhuma relação com o que tragicamente ocorreu na Europa no século passado. Isso é feito por políticos de todo espectro, seja o ex-presidente Lula, que em 2014 comparou adversários políticos a nazistas, seja o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que viu absurdas semelhanças entre uma decisão do STF e as perseguições da chamada “Noite dos Cristais”. Não há relação possível. A começar pelo fato evidente de que vivemos em um estado democrático de direito, no qual as liberdades e garantias estão asseguradas, e prosseguindo pela evidência de que não há nada hoje entre nós daquela perseguição — étnica ou nacional — vigente no regime hitlerista. Assistimos à vulgarização de um evento único em suas características que, reforço, não deve se prestar a instrumento de luta política. Deixem os judeus fora disso.

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Não cabe à Conib tomar partido no cenário político atual ou em qualquer outro momento, mas sim defender valores e princípios. Não temos partido, mas certamente temos lado. E o nosso lado é aquele onde prevalecem o respeito às diferenças, o pluralismo, a democracia e os direitos humanos. Fazer parte de uma minoria no século XXI não é fácil. E está ficando mais complicado. Da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo extremismo islâmico, intolerantes de todos os matizes sentem-se cada vez mais à vontade para atacar grupos minoritários. Essa luta contra a intolerância e a propagação do ódio não está circunscrita às religiões. O assassinato de George Floyd, em Minneapolis, mostra quanto o racismo contra os negros ainda está presente na sociedade americana. Como vítimas preferenciais também do preconceito e da violência racista, temos a obrigação de lutar pela promoção do entendimento e pelo firme combate ao ódio e à intolerância.

* Fernando Lottenberg é advogado e presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib)

Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692

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