Se fosse perguntado a alguém que, por alguma razão, não soubesse identificar os personagens da foto acima qual o tipo de situação aparece ali, a resposta certamente viria sem hesitação: eles estão manifestando a celebração de um acordo. Se fosse possível viajar no tempo e exibir esse aperto de mãos a um cidadão da Antiguidade, a reação seria a mesma. Não por acaso. Apertos de mãos estão representados em relevos remotíssimos — como o que mostra o rei Salmaneser III, da Assíria, saudando um rei babilônio, datado do século IX a.C. — e são mencionados na Ilíada e na Odisseia, monumentos da literatura escritos pelo grego Homero em fins do século VIII a.C. ou início do VII a.C. Não é exagero afirmar que a história desse ato se confunde com a das civilizações. Trata-se de um gesto humano, demasiado humano — e que, no entanto, para alguns, está com os dias contados.
O aperto de mãos está com os dias contados? Bem, pelo menos é o que defendem algumas autoridades, inclusive de saúde pública, da linha de frente do combate ao novo coronavírus. Principal conselheiro do presidente americano Donald Trump para questões relacionadas à pandemia, o infectologista Anthony Fauci declarou recentemente que, passado o período de isolamento social, ninguém mais deve voltar a se cumprimentar dando as mãos.
A posição de Fauci tem argumentos científicos. Embora não possam ser chamadas de “fômites” — classificação restrita aos objetos que servem de depósito a vírus e bactérias, como maçanetas de porta, botões de elevador etc. —, as mãos têm sido um dos grandes focos para a propagação da Covid-19. Isso porque elas estão em contato frequente com os tais fômites, levando a pessoa a infectar a si mesma, ao esfregar os olhos, por exemplo, ou contaminar um terceiro ao saudá-lo oferecendo-lhe a mão. “Nos Estados Unidos, os médicos já aboliram o costume de cumprimentar alguém com a mão, preferindo colocá-la no bolso do jaleco, especialmente durante o inverno, período do ano em que mais circulam os diferentes vírus de gripe”, disse a VEJA o epidemiologista carioca Bruno Scarpellini, mestre em saúde pública e doutor em doenças infecciosas, que apoia a medida.
“Antes de ser uma prática corriqueira, dedicada a pessoas com as quais se tem pouca ou nenhuma intimidade, o ato de cumprimentar alguém com a mão tinha conotações que giravam (tão somente) em torno de conceitos como amizade e paz”, afirma o sociólogo holandês Herman Roodenburg, estudioso do assunto. É dentro dessa perspectiva de demonstrar uma atitude pacífica que se encaixa uma tese bastante divulgada pelo senso comum sobre a origem do gesto: ele teria como objetivo deixar claro que as mãos estavam livres de armas, relaxando o ambiente. Na Idade Contemporânea, a popularidade do aperto de mãos deve muito à sua difusão na América do Norte, atribuída aos quakers. Esse grupo religioso se recusava a replicar as reverências habituais das cortes europeias e via no cumprimento feito com as mãos um modo de externar uma relação entre iguais, sem castas.
Para quem se surpreende hoje com a proposta, em nome da saúde, de abandono de um gesto largamente difundido, vale lembrar que isso já ocorreu antes. No século XV, o rei Henrique VI, da Inglaterra, numa tentativa de frear a peste negra, proibiu o cumprimento em que se oferecia o lado do rosto. A ordem se espalhou por outros países. Na França, a saudação com um beijo foi retomada somente após a revolução e, em 2009, voltou a ser repreendida devido à gripe suína. O próprio aperto de mãos passou a ser recriminado depois do surto de Sars, na Ásia, e de ebola, na África. Agora, com a Covid-19, ganha adeptos uma versão mais segura de cumprimento: o ato de tocar os cotovelos, apelidado de Wuhan-shake, uma referência à cidade chinesa considerada o ponto de partida da doença — infecciosa até para antigos hábitos.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684