O governo do Japão anunciou nesta terça-feira uma histórica e controversa reinterpretação da Constituição pacifista adotada pelo país depois da II Guerra Mundial para permitir que as Forças Armadas ajudem aliados sob ataque, mesmo que o Japão não esteja diretamente envolvido. O primeiro-ministro Shinzo Abe defendeu a expansão do papel militar do Japão como forma de manter a paz ao dissuadir agressores. No entanto, uma nação a ser dissuadida, a China, considera a mudança uma tentativa de desestabilizar a região. A Coreia do Sul, outro aliado dos EUA, mas que sofreu com o expansionismo japonês durante a primeira metade do século XX, disse que não aceitaria qualquer mudança de política que afetasse sua segurança e com a qual não concordasse.
A mudança não entrará em vigor imediatamente porque o Parlamento (onde a coalizão governista tem maioria confortável) ainda precisa derrubar barreiras legais à ampliação da ação militar do país. Restrições podem ser impostas neste processo, se a legislação assim exigir. Independente disso, já há limites previstos à atuação dos militares. Abe afirmou que não haverá mudanças no princípio geral de que o país não envia tropas para combate no exterior, e seu gabinete explicou que as forças de autodefesa só poderão agir quando for identificado um “perigo claro” ao Japão ou ao seu povo, usando “o mínimo necessário de força”.
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A medida foi insistentemente promovida pelo premiê, apesar da rejeição de boa parte da opinião pública no Japão e também de membros da coalizão governante. Milhares de manifestantes, incluindo estudantes e aposentados, marcharam na segunda-feira até a sede do governo carregando faixas e gritando “Eu não quero ver os nossos filhos e soldados morrerem” e “Protejam a Constituição”. No domingo, em Tóquio, um homem ateou fogo em si mesmo como forma de protesto.
Abe tentou tranquilizar a população, afirmando que, apesar da medida, o Japão “não vai se envolver em uma guerra para defender outro país”, mas justificou sua posição ressaltando as ameaças que pairam sobre a nação, em uma clara referência às ambições da China de desafiar o domínio dos EUA e seus aliados na região. Os Estados Unidos, que derrotaram o Japão na II Guerra Mundial e depois se tornaram aliados próximos com um tratado de cooperação na área de segurança, comemorou a mudança e afirmou que ela tornará mais efetiva a aliança bilateral. “Essa decisão é um passo importante para o Japão porque busca dar uma maior contribuição para a paz regional e global”, disse o secretário de Defesa Chuck Hagel, em comunicado.
O Partido Liberal-Democrata de Abe teve de negociar com seu parceiro de coalizão, o budista Novo Komeito, inicialmente contrário à reinterpretação do texto constitucional. Também surgiram críticas em relação a forma como o governo agiu para realizar a mudança, desprezando a possibilidade de promovê-la por meio de uma emenda constitucional, o que exigiria uma tramitação longa no Legislativo. Daí o atalho por meio da “reinterpretação” da Constituição.
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Mudanças – O artigo nove da Constituição japonesa estabelece que seu povo “renuncia para sempre à guerra como um direito soberano da nação e à ameaça ou uso da força como meio de resolver disputas internacionais”. Nas últimas décadas, as Forças Armadas ficaram de fora dos conflitos que ocorreram na Ásia. A maior parte da segurança do Japão é garantida pelos EUA, que possuem várias bases no país. Pela interpretação atual, o Japão mantém forças militares unicamente como medida de autodefesa. A nova interpretação permite ao país exercitar seu direito de autodefesa coletiva, se “a existência do país for ameaçada e existir um claro perigo de que sejam cancelados os direitos do povo à vida, à liberdade e à busca da felicidade”.
O conceito de autodefesa coletiva está contemplado no direito internacional e, além da assistência militar aos aliados em caso de ataque, pode permitir a participação do Japão em operações de segurança das Nações Unidas.
O texto pacifista da Constituição foi adotado em 1947, durante a ocupação do país por forças americanas, e contou com a supervisão do general Douglas MacArthur, o supremo comandante aliado. O objetivo era frear o militarismo japonês que vigorou nas décadas anteriores ao conflito e mergulhou a Ásia em um banho de sangue durante a II Guerra Mundial.
(Com agências Reuters, EFE France-Presse)