Índia proíbe a exibição de ‘Cinquenta Tons de Cinza’
Os links no Youtube para o documentário sobre o estupro coletivo de 2012 também foram bloqueados depois de pedidos do governo indiano
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Da Redação
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5 mar 2015, 16h05
Trailer do filme 50 tons de cinza (Divulgação/VEJA)
O comitê de censura da Índia proibiu a exibição do filme “Cinquenta Tons de Cinza” nos cinemas do país. Os produtores da adaptação cinematográfica do romance erótico escrito por E.L. James chegaram a propor uma versão sem nenhuma cena de nudez, mas não convenceram o conselho: os diálogos e a própria temática do filme foram recriminados. Ainda cabe recurso da decisão. O filme já havia sido censurado em países como Indonésia, Malásia e Quênia.
Essa não é o primeiro caso de censura de filmes na Índia. As autoridades indianas acreditam que o veto a produções com cenas de sexo pode coibir o alto número de estupros no país, o que nunca se provou.
Também nesta semana, foi vetada a exibição de um documentário da BBC que traz uma entrevista com um dos condenados pelo estupro coletivo de uma jovem dentro de um ônibus em Nova Délhi, em 2012. O governo indiano pediu ao Youtube que bloqueasse todos os acessos a India’s Daughter (“Filha da Índia”), e nesta quinta-feira a maioria dos links já não estava mais no ar.
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Os comentários de Mukesh Singh, um dos quatro homens condenados à morte pelo estupro da jovem de 23 anos, causaram tumulto nas redes sociais e reacenderam o debate sobre igualdade de gêneros no país. O sistema judiciário indiano, que contém leis contra “discursos de ódio” para prevenir conflitos entre as diferentes comunidades religiosas e étnicas que compõem sua população, decidiu intervir mais uma vez no caso.
(Da redação)
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1. A impunidade
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(AFP/VEJA)
O estupro especialmente hediondo de uma universitária de 23 anos que voltava do cinema com um amigo e foi atacada por seis homens dentro de um ônibus na capital Nova Délhi chocou a população indiana. Todos os criminosos se revezaram no ataque sexual e no espancamento da vítima, em violências que incluíram uma barra de ferro e provocaram ruptura intestinal. A estudante de fisioterapia não resistiu aos ferimentos. A indignação com as autoridades forçou mudanças na legislação, que foi reforçada e passou a prever a pena de morte para casos brutais – sentença que foi aplicada contra os agressores da universitária. No entanto, o endurecimento das leis não se mostrou suficiente para intimidar os criminosos.
Entre 2010 e 2012, as condenações por estupro no país caíram de 17,1% para 14,3%. De acordo com o último relatório do Escritório Nacional de Registros de Crimes, dos mais 200.000 casos de estupro em 2012, menos de 15% foram a julgamento. Destes, apenas 26% resultaram em condenações. Outro dado alarmante é que em mais de 94% dos casos de estupro as vítimas eram conhecidas dos agressores, que geralmente são familiares, vizinhos, amigos da família. Com isso, em muitos casos, a própria família da vítima protege os agressores da Justiça, testemunhando em favor deles.
Roop Rekha Verma, representante de uma organização de defesa das mulheres, afirmou à rede BBC que as leis mais rígidas podem até ter tornado as mulheres mais vulneráveis, diante do temor de condenações. Sua ONG está baseada em Lucknow, capital do estado de Uttar Pradesh, norte do país, onde casos de mulheres enforcadas depois de serem estupradas têm sido registrados.
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2. O preconceito machista
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(AFP/AFP)
O machismo comportamental é manifestado na Índia pela má vontade de policiais em ouvir as vítimas de abuso, de juízes e promotores em julgar com rigor os abusos sexuais contra mulheres, e também em situações comuns em muitos lares onde os homens fazem as refeições antes das mulheres, por exemplo. Em janeiro, uma política indiana declarou que “estupros também ocorrem por causa das roupas que as mulheres usam, do seu comportamento e da sua presença em lugares inapropriados”.
Nos casamentos também é fácil ver a distinção que a sociedade faz entre homens e mulheres – elas muitas vezes não têm chance de opinar sobre seus destinos em uniões arranjadas pelas famílias. Na Índia ainda resiste uma crença de que ter uma filha é algo ruim. Isso acontece porque, quando uma mulher se casa, a família tem de pagar um dote (em dinheiro ou em presentes caros) à família do noivo. Visto como uma forma de ascensão social, o casamento é algo mercantil e as mulheres fazem parte da negociação como moeda de troca. Os dotes persistem também nos centros urbanos e muitas vezes são exorbitantes, com os pais das mulheres presenteando as famílias dos noivos com carros importados e até imóveis.
A Índia ocupa a posição 132 no ranking de desigualdade de gêneros elaborado pela ONU, atrás de países como o Paquistão.
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3. As questões religiosas
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(Narinder Nanu/AFP/VEJA)
As duas maiores religiões do país, o hinduísmo (com mais de 80% da população) e o islamismo (mais de 13%), são patriarcais e priorizam os homens em seus ritos e dogmas. Profundamente religiosa, a sociedade indiana foi fortemente influenciada pelo preconceito machista das religiões. A influência foi tanta que se enraizou nas famílias e chegou até nas instituições políticas e jurídicas da Índia. Até o ano passado, por exemplo, perseguir uma mulher não era considerado um ato criminoso. Com isso, ex-namorados e ex-maridos tinham liberdade total para perseguirem e constrangerem suas ex-companheiras.
Textos que influenciaram códigos legais, como as Leis de Manu, afirmam que uma mulher não está apta a ser independente em nenhum momento de sua vida. Quando criança, deve viver sob a custódia do pai, quando adulta, sob a custódia do marido, e quando viúva, sob os cuidados do filho homem.
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4. O sistema de castas
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(Biswaranjan Rout/AP/VEJA) Mesmo oficialmente rejeitado pela Constituição, o sistema de castas ainda é presente na sociedade indiana, principalmente nas áreas menos desenvolvidas e na zona rural. Esse rígido sistema propicia uma forte segregação social, com as castas consideradas mais nobres subjugando as pessoas consideradas inferiores. Com isso, os homens de castas superiores se sentem livres para abusaram das mulheres ‘inferiores’. No final de maio,
duas adolescentes dalits (a casta mais baixa de todas) foram estupradas e enforcadas em um pequeno município do estado de Uttar Pradesh.