O historiador britânico Peter Burke é referência mundial em história cultural e do conhecimento. Com mais de 28 livros publicados em 34 línguas, já passou pelas universidades de Oxford, Essex, Sussex, Princeton e pela Universidade de São Paulo. Aos 80 anos, é professor emérito de Cambridge e casado com a historiadora brasileira Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. É um dos mais de 500 professores universitários que assinaram o manifesto favorável ao ex-presidente Lula, “Eleição sem Lula é Fraude”.
Burke falou a VEJA sobre seu apoio ao movimento e denunciou o “pânico moral” que atinge a sociedade brasileira e motiva a Operação Lava Jato. O estudioso também tratou da relação entre a história cultural brasileira e a corrupção e do desafio de organizar a enorme quantidade de informação disponível após séculos de estudo sobre o passado.
Há algum traço da cultura popular brasileira que lhe chama a atenção como historiador? O que me chama a atenção em relação à cultura popular brasileira, pelo menos até o início do século XX, é como temas da Idade Média, que não eram mais tão importantes na Europa, permaneceram populares por um longo período aqui. Canções sobre Roland, chefe militar francês do imperador Carlos Magno nos anos 800 d.C., ainda eram cantadas no Brasil até a revolta do Contestado. Isso é fascinante! Mas é claro, o país demorou mais para se urbanizar e enquanto sua sociedade se manteve predominantemente rural, esses temas medievais e suas tradições ainda se mantiveram vivos.
Muitos dizem que a corrupção já é um traço cultural do Brasil. Somos uma exceção? A corrupção não é algo novo na história. Na Roma Antiga, Cícero fez seus maiores e mais famosos discursos durante o julgamento de um oficial corrupto, que comandava a Sicília na época. Paraísos fiscais não existiam na Roma Antiga e as técnicas de corrupção tiveram que mudar, porque a inspeção do governo se tornou mais sofisticada. Mas é algo que acontece o tempo todo, embora com extensão maior ou menor em períodos e países diferentes. A verdade é que a indústria da construção sempre funcionou de forma desvirtuada, não se conseguem contratos sem entregar algum dinheiro. Alguns dos maiores escândalos de corrupção da Inglaterra no meu tempo tiveram a ver com a indústria da construção. Houve um famoso, New Castle, nos anos 1960, envolvendo o prefeito e um dos mais importantes funcionários públicos em Londres. Tive a oportunidade de conversar com esse servidor. Um homem brilhante, muito inteligente, mas que não resistiu às tentações particularmente grandes da indústria.
Herdamos a corrupção de alguma outra cultura? O Brasil foi um pouco inspirado pela Itália e pela famosa operação Mãos Limpas: a descoberta de inúmeros casos de subornos que aconteciam em Milão. A atual situação também me lembra a da caça às bruxas do século XVII. Começaram processando algumas pessoas, elas acusam outras e isso continuou por muito tempo. Na verdade, em alguns lugares, a caça às bruxas só parou quando algumas mulheres foram espertas o bastante para acusar o prefeito da cidade e outras pessoas importantes. Aqui, de forma interessante, muitos governantes já estão na prisão e ainda assim os casos continuam a aparecer.
A Operação Lava Jato se enquadra no que o senhor chama de ‘caça às bruxas’? A Operação Lava Jato me parece um exemplo do que os sociólogos chamam de “pânico moral”, em que a tentativa de punir as pessoas culpadas de algum crime, nesse caso de corrupção, se transforma numa espécie de caça às bruxas. Nesse contexto, alguns indivíduos – tal como o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, que foi levado ao suicídio em decorrência da humilhação a que foi submetido – são considerados culpados antes que qualquer evidência seja apresentada. Como historiador, tudo isso me faz lembrar do pânico anticomunista nos Estados Unidos na era do Senador McCarthy, ou do pânico anticatólico na Inglaterra do século 17. Os dois casos geraram muitos casos de injustiça irreparáveis.
“Preocupa-me muito a ameaça ao Estado de Direito que se vê hoje no Brasil, que é uma ameaça à própria democracia”
O senhor assinou o manifesto “Eleição sem Lula é Fraude”, que denuncia uma perseguição política contra o ex-presidente. Por que decidiu se juntar a esse movimento? Porque me convenci de que os procedimentos legais contra Lula envolvem uma série de arbitrariedades que parecem mais uma simples máscara usada pelos de seus opositores políticos para tentar excluir da eleição o candidato que parece, segundo as pesquisas, ter apoio de grande parte da população brasileira. E concordo também com o argumento de que a questão levantada pelo manifesto não diz respeito somente ao ex-presidente e seu partido, mas a todos os cidadãos brasileiros e ao futuro da democracia.
Que tipo de arbitrariedades? Não sou um especialista em direito, mas respeito muito o julgamento de Geoffrey Robertson, o notável advogado britânico-australiano de direitos humanos. Para ele, o juiz Sergio Moro infringiu a lei na sua tentativa de desacreditar Lula, o que sugere que as acusações contra o ex-presidente fazem parte de uma campanha política. Robertson também lembrou que o que ele chama de “sistema inquisitorial de investigação e julgamento” brasileiro, um legado dos tempos coloniais em momentos de crise, para o abuso de poder e para a violação do Estado de Direito. A violação dos direitos a um julgamento justo justifica a petição feita por Lula ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, que está em curso. É sem dúvida uma ameaça ainda muito maior do que a corrupção.
O senhor é um apoiador do governo Lula? Tenho visitado o Brasil regularmente desde 1986, incluindo o período em que Lula foi presidente e me impressionei muito com suas realizações visíveis, como o Bolsa Família e o Fome Zero. Lamento muito saber que muitas das realizações de Lula estão sendo desfeitas pelo governo Temer. Como estrangeiro, posso testemunhar que Lula é alvo de respeito internacional e que sua reputação não é muito diferente da de Nelson Mandela, comparação feita pelo jornal Financial Times. Mas não assinei o manifesto por admirar as realizações de Lula ou respeitá-lo, e nem muito menos por considerá-lo imune a qualquer culpa. Mas sim, por acreditar que ele, assim como qualquer um de nós, num país civilizado, deve ter os direitos de defesa respeitados num processo justo e dentro do Estado Democrático de Direito, em que o império da lei está acima da vontade dos indivíduos, quaisquer que sejam eles.
“Como estrangeiro, posso testemunhar que Lula é alvo de respeito internacional e que sua reputação não é muito diferente da de Nelson Mandela”
Sobre o papel do historiador no mundo contemporâneo, como o senhor vê o futuro dos estudos em sua área de atuação diante da possibilidade nunca antes experimentada de acesso quase ilimitado às informações? A grande quantidade de informações nos trouxe novos problemas de interpretação. Em uma era na qual a história mundial é cada vez mais importante, o excesso de informações e redes globais pode ser um problema. A verdade é que a história é um queijo cheio de buracos. Também poderíamos dizer que escrever sobre a história é como montar um quebra-cabeça quando se sabe que a metade ou mais da metade das peças está faltando.
Sabemos mais graças à tecnologia? A raça humana sabe hoje, de forma coletiva, muito mais do que no passado. Mas os indivíduos sabem coisas diferentes, porque as pessoas não podem dominar tudo. A tecnologia não pode fazer nada por nós nesse sentido, temos que escolher o que estudar.
Focar em estudos de temas específicos é bom para o desenvolvimento do conhecimento? Ou perde-se muito dessa forma? Conforme me disse um amigo, isso é uma questão de saber mais sobre menos até acabarmos sabendo tudo sobre nada. A especialização é um caminho necessário, mas é preciso que haja pessoas para unir e relacionar todo o conhecimento e as descobertas. Especializar-se foi a solução encontrada para o problema da sobrecarga de informação, mas produziu um novo problema: a fragmentação do conhecimento.
Quando começamos a nos especializar? Já no meio do século XIX, se não antes disso. Primeiro na medicina, mas, logo depois, as primeiras universidades alemãs e americanas começaram a multiplicar os institutos e os departamentos especializados. Nas universidades medievais só havia quatro faculdades: artes, teologia, direito e medicina. Hoje, temos uma pluralidade.
Ainda veremos o nascimento de um grande gênio multidisciplinar como Leonardo Da Vinci? Os polímatas ainda existem, mas a especialização está tornando sua sobrevivência cada vez mais difícil. As universidades não são mais um lugar tão favorável para que estudiosos assim floresçam, deixaram de ser tão flexíveis quanto à transição entre diferentes áreas de estudo. É uma pena, porque muitas inovações surgiram depois que especialistas em uma disciplina se aventuraram em outra e precisamos deles mais do que nunca. Esses estudiosos poderiam escrever artigos para jornais e revistas sobre seus assuntos de interesse, mas quem quer ler um texto de 50 páginas atualmente? E quem quer imprimir ou publicar tudo isso? Não sou um pessimista total, mas realmente enfrentamos um desafio.
Em uma de suas últimas entrevistas, o antropólogo Claude Lévi-Strauss se disse pessimista em relação ao futuro da humanidade, sobretudo por causa do crescimento vertiginoso da população do planeta. O senhor concorda com esse diagnóstico? Não me preocupo só com o crescimento da população, mas com o que as pessoas estão fazendo com o meio ambiente, desmatando e descartando plástico no mar. As respostas governamentais não são equivalentes ao tamanho dos problemas e agora é tarde demais para tentar resolver. Fico muito feliz de ter nascido há 80 anos e não quando meus netos nasceram. Sou um pouco pessimista também.