Depois de um duro choque de realidade, em que viu seu plano de revirar política e economicamente a Argentina tropeçar e quase cair no Congresso, Javier Milei colheu, enfim, uma vitória decisiva no propósito de dar ao país as feições ultraliberais que deseja. Na quinta-feira 13, enfim, os senadores aprovaram a Lei de Bases, um pacote de medidas que, no conjunto, pretende reduzir a presença do Estado na economia, sanear as contas públicas e ampliar os poderes do Executivo. É verdade que a proposta, mais conhecida como Lei Omnibus (para todos, em latim), minguou de 664 para 238 artigos para poder vingar, o que ocorreu após espremidíssima votação: 36 votos contra, 36 a favor, cabendo à vice-presidente, Victoria Villarruel, o voto de minerva. Daí o apelido que a oposição se apressou a dar ao texto: “micro-ônibus”.
O próximo movimento de Milei é se articular justamente com a “casta” que tanto desdenhou para alargar suas bases no pleito legislativo do ano que vem — hoje, seu nanico partido, o Liberdade Avança, conta com 38 de 257 deputados e sete dos 72 senadores. Dessas costuras depende o sucesso do projeto, um duelo de longo prazo. Os protestos do lado de fora do Congresso ajudam a dar os contornos dos obstáculos no horizonte do ocupante da Casa Rosada — por ora, ele registra popularidade na casa dos 50%, mas isso pode evaporar rapidamente, já que os cortes de benefícios e subsídios têm pesado no bolso. O próprio Milei, mantendo o tom megalômano, reconheceu ser só um começo. “É o primeiro passo para a recuperação da nossa grandeza”, disse sobre o documento, que retornará à Câmara apenas para cumprir o rito.
Ajusta daqui, ajusta dali, o que sobrou da desidratada Lei de Bases não é pouco na direção de reconfigurar o Estado. No início, o presidente queria poder governar por decreto em onze áreas durante três anos — ficaram quatro com validade de um ano, mas se concentram em assuntos centrais da gestão (economia, finanças, administração e energia). É ferramenta, porém, que deve ser usada com critério. “Precisamos observar como o presidente utilizará os poderes extraordinários”, diz a cientista política Ariadna Gallo, da Universidade de Buenos Aires. Das quarenta empresas que Milei planejava privatizar, restaram oito, estando de fora a petrolífera YPF, o Banco de La Nación e a Aerolíneas Argentinas, que saiu do rol nos últimos minutos. Um dos mais celebrados tópicos foi certamente o estabelecimento do Regime de Incentivos a Grandes Investimentos, com o objetivo de destravar a burocracia e dar estímulo a empresas dispostas a investir vultosas somas em solo argentino. Também passou uma anistia fiscal para fundos no exterior. A ideia aí é tentar trazer dólares ao país, algo essencial num cenário de baixíssimas reservas.
Os mercados emitiram sinais imediatos de aprovação, e o Fundo Monetário Internacional (FMI) liberou mais 800 milhões de dólares para a Argentina refinanciar sua dívida. Com um arrocho brutal que se refletiu numa subida da pobreza, ao mesmo tempo que garantiu o superávit primário e o recuo da inflação para um dígito, organizações e sindicatos ligados ao peronismo seguem protestando, assim como uma ala dos governadores, temerosos de que suas províncias percam a autonomia. Eles são, aliás, peças nevrálgicas no intrincado tabuleiro político argentino, e Milei e sua turma precisarão encontrar um jeito de atraí-los — inclusive para o pacto que era para ser “de maio” e agora está previsto para 9 de julho, dia da independência do país, quando o presidente lançará as bases liberais para sua simbólica “refundação” da Argentina. “Mesmo com todas as concessões que precisou fazer, Milei acalmou as dúvidas sobre sua governabilidade”, avalia o sociólogo Marcelo Casarin, da Universidade Nacional de Córdoba. Uma vitória que ainda requer tempo e habilidade para se provar duradoura.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898