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Exclusivo: Leia trechos do livro que conta intimidades de Zelensky

Presidente ucraniano reflete sobre seus próprios arrependimentos e fala, com surpreendente franqueza, sobre conversas de paz fracassadas com Vladimir Putin

Por Caio Saad 5 jan 2024, 08h00

Antes da invasão russa à Ucrânia, há quase dois anos, Volodymyr Zelensky era apenas um novato político, alavancado ao comando de um país em boa parte por uma série de humor que interpretava justamente um zé ninguém alçado à Presidência. Nas semanas seguintes, com suas já características roupas verdes ao estilo militar, dividiu seu tempo entre o fronte, ignorando apelos de sua equipe de segurança, e discursos virtuais diários quase onipresentes da ONU aos EUA, da UE ao Grammy.

Com base em quatro anos de reportagens e centenas de entrevistas, muitas delas com Zelensky, seus familiares, amigos e até inimigos, o correspondente Simon Shuster, da revista americana Time, conta em “O showman – Os bastidores da guerra que abalou o mundo e forjou a liderança de Volodymyr Zelensky” (Record, 420 páginas, R$104,90), nas livrarias em 26/02, a história intimista e reveladora de como um comediante evoluiu a símbolo de resiliência.

O showman - Os bastidores da guerra que abalou o mundo e forjou a liderança de Volodymyr Zelensky
O showman – Os bastidores da guerra que abalou o mundo e forjou a liderança de Volodymyr Zelensky (Record/Divulgação)

Ao longo das páginas, Zelensky reflete sobre seus próprios arrependimentos, fala abertamente sobre as causas da invasão e, com surpreendente franqueza, sobre conversas de paz fracassadas com Vladimir Putin.

Confira, com exclusividade, trechos do capítulo 3 e 4 do livro:

Trecho do capítulo 3 – Cidade de bandidos

Zelensky já era uma celebridade quando a primeira filha nasceu, em 2003. Naqueles anos, Olena quase sempre estava na casa de seus pais, com a filha no colo, vendo o marido atuar na TV. Naquela época, viviam a maior parte do tempo separados. Ele residia em Kiev. Ela ficou com os pais na cidade natal, Kryvyi Rih, que Zelensky mais tarde afirmou ter forjado seu caráter. “Minha grande alma, meu grande coração”, disse ele uma vez. “Tudo que eu tenho veio de lá.” A tradução do nome da cidade é “chifre torto”, e nas conversas Zelensky e a esposa diziam Krivoy, referindo-se a ela no idioma russo – “lugar torto” –, onde ambos nasceram durante o inverno de 1978, com a diferença de duas semanas de um para o outro.

Poucos lugares na Ucrânia tinham pior reputação de violência e decadência urbanas do que Kryvyi Rih. A principal fonte de empregos da cidade era a Companhia Siderúrgica Lênin, cujos altos-fornos gigantescos haviam despejado mais aço incandescente do que qualquer outra instalação congênere na União Soviética. Durante a Segunda Guerra Mundial, a usina foi posta abaixo pela Luftwaffe, quando os nazistas deram início à ocupação da Ucrânia. Foi reconstruída nos anos 1950 e 1960, e milhares de veteranos de guerra foram trabalhar lá, assim como prisioneiros libertados dos campos de trabalho soviéticos. A maioria desses indivíduos se estabeleceu em blocos de moradias industriais, cortiços de concreto armado que ofereciam quase nada em termos de lazer, cultura ou possibilidade de evolução pessoal. Não havia salas de cinema suficientes, ginásios ou instalações desportivas para atender aos jovens. Quase no final dos anos 1980, quando a população atingiu a marca de 750 mil habitantes, a cidade se tornou o que Zelensky mais tarde descreveu como banditsky gorod – cidade de bandidos.

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Olena tem lembranças mais afetivas. “Ao meu ver a cidade não era repleta de bandidos”, disse-me ela. “Pode ser que meninos e meninas frequentem lugares diferentes à medida que crescem. Mas, sim, é verdade. Houve um período, nos anos 1990, em que se praticavam muitos crimes, especialmente no meio dos jovens. Havia gangues.” Os jovens que integravam essas gangues, na maioria adolescentes, eram chamados beguny – literalmente, “fugitivos” –, porque os grupos saíam em fuga, correndo pelas ruas, agredindo rivais, dando facadas, virando carros e quebrando janelas. Algumas gangues eram conhecidas por usar explosivos artesanais, armas de fogo improvisadas, anzóis. “Alguns acabavam mortos”, disse Olena. De acordo com reportagens locais, as fatalidade chegaram a dezenas em meados dos anos 1990. Muitos fugitivos ficaram mutilados depois de agredidos com bastões ou feridos por estilhaços de bombas caseiras.

“Todos os bairros estavam naquela situação”, disse a primeira-dama. “Quando jovens de certa idade circulavam pela vizinhança errada, logo eram questionados: de que lado da cidade você é? E então começavam os problemas.” Ela disse que era quase impossível deixar de se juntar a uma das gangues. “Mesmo que alguém estivesse caminhando para casa, no próprio bairro, eles se aproximavam para perguntar à qual gangue ele pertencia e o que estava fazendo ali. Só o fato de estar sozinho era assustador. Não se podia andar sozinho.”
As gangues atingiram o ápice nos últimos anos da década de 1980, quando havia dezenas de grupos de arruaceiros espalhados pela cidade, e milhares de fugitivos. Muitos dos que sobreviveram até a década de 1990 viriam a se diplomar no crime organizado, que naquela época floresceu em Kryvyi Rih durante a súbita transição para o capitalismo. Alguns setores da cidade se transformaram em terrenos baldios frequentados por malfeitores e alcoólatras. Mas Zelensky, graças, especialmente, à família, resistiu ao apelo das ruas.

Seu avô paterno, Semyon Zelensky, tinha sido oficial da polícia municipal, investigando o crime organizado ou, conforme seu neto diria mais tarde, “prendendo bandido”. Relatos de ações do avô durante a Segunda Guerra Mundial causaram profunda impressão no jovem Zelensky, assim como os traumas do Holocausto. Ambos os lados da família são de origem judaica, e muitos integrantes pereceram na guerra. O lado materno sobreviveu, em grande parte, por ter se retirado para a Ásia Central no início da ocupação alemã, em 1941. No ano seguinte, quando ainda era adolescente, Semyon Zelensky alistou-se no Exército Vermelho e acabou no comando de um pelotão de morteiros. Seus três irmãos lutaram na guerra e nenhum sobreviveu. Nem mesmo seus pais sobreviveram, bisavós de Zelensky, que, pelo menos segundo relato da família, foram baleados e mortos durante a ocupação nazista da Ucrânia, assim como milhões de outros judeus ucranianos, no que ficou conhecido como “Holocausto das Balas”.

Ao redor da mesa da cozinha, os parentes de Zelensky costumavam falar sobre essas tragédias e os crimes cometidos pelos invasores alemães. Mas pouco se comentava sobre os tormentos impostos por Josef Stálin à Ucrânia. Zelensky se lembra de ouvir, durante a infância, as avós falarem vagamente sobre os anos em que soldados soviéticos vinham confiscar alimentos produzidos na Ucrânia, vastas colheitas de cereais e trigo, sendo tudo levado à força. Era parte do esquema de Stálin implementado no início da década de 1930 para reconstruir a sociedade soviética, e a iniciativa causou uma escassez catastrófica na Ucrânia, chamada de Holodomor – “morte por fome” – que matou pelo menos 3 milhões de pessoas na Ucrânia. Nas escolas soviéticas, o assunto era considerado tabu, inclusive naqueles estabelecimentos de ensino em que as avós de Zelensky eram docentes, uma delas professora de ucraniano, outra de russo. Em se tratando da fome, Zelensky disse: “Elas falavam no assunto com toda cautela, dizendo que houve um período em que o Estado se apropriava de tudo, de todos os alimentos.”

Caso se ressentisse das ações das autoridades soviéticas, a família de Zelensky sabia que era melhor não expor tal frustração em público. O pai de Zelensky, Oleksandr, homem troncudo e de princípios rígidos, recusou-se a vida inteira a se filiar ao Partido Comunista. “Era categoricamente contrário ao partido”, disse-me Zelensky, “embora isso, sem dúvida, atrapalhasse sua carreira.” Na condição de professor de cibernética, Oleksandr Zelensky trabalhou a maior parte da vida no setor de mineralogia e geologia. A esposa, Rymma, engenheira por formação, era bastante ligada ao filho único e carinhosa, preferindo tratá-lo com gentileza em vez de severidade.

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Em 1982, quando Zelensky tinha 4 anos, o pai aceitou um convite para se dedicar a um projeto de desenvolvimento de mineração no norte da Mongólia, e a família mudou-se para Erdenet, cidade fundada oito anos antes, onde se pretendia explorar um dos maiores depósitos de cobre do mundo. (O nome da cidade, em mongol, significa “tesouro”.) O trabalho era bem-remunerado, segundo padrões soviéticos, mas obrigava a família a suportar a poluição que circundava as minas, além de lidar com as dificuldades da vida na cidade fronteiriça. A comida era estranha e insossa. Leite de égua fermentado era o alimento básico, e a dieta da família se restringia a carne de carneiro e, no verão, melancia, obrigando Zelensky e a mãe a ficar na fila durante horas para obtê-la.

Rymma, que era esguia e frágil, de nariz comprido e feições bonitas, viu sua saúde se deteriorar por causa do clima severo e logo decidiu voltar para a Ucrânia. Zelensky era aluno da primeira série numa escola na Mongólia, e tinha começado a compreender o idioma local quando embarcaram no avião, de volta para casa, em 1987. O pai não os acompanhou, e, nos quinze anos seguintes – praticamente toda a infância de Zelensky –, Oleksandr dividiu seu tempo entre Erdenet, onde continuava a desenvolver o sistema automatizado para gerenciar minas, e Kryvyi Rih, onde ensinava ciência da computação na universidade local. Os pais de Zelensky ficaram separados durante aqueles anos por cinco fusos horários e, aproximadamente, 6 mil quilômetros de distância. Apesar da distância, o pai continuou a ser presença marcante na vida de Zelensky.

“Meus pais não me deixavam ficar à toa”, disse ele mais tarde. “Sempre me inscreviam em alguma atividade.” O pai matriculou Zelensky num dos cursos de matemática que ministrava na universidade e começou a preparar o menino para a carreira de ciência da computação. A mãe levava-o às aulas de piano, dança de salão e ginástica. Para se certificar de que estaria apto a enfrentar os valentões do lugar, os pais também o matricularam num curso de luta greco-romana. Nenhuma dessas atividades foi escolha sua, mas ele as levou adiante pelo senso de dever aos pais. “Eram sempre atentos em termos de disciplina”, ele disse. A abordagem de seu pai em relação à educação era rígida.

Zelensky denominava-a “maximalista”. Pode-se dizer que era característica das famílias judaicas na União Soviética, que julgavam que superação fosse a única saída para se conquistar uma chance justa num sistema montado contra elas. “Você tem que ser o melhor de todos”, disse Zelensky sintetizando a abordagem dos pais quanto à educação. “Então haverá um espaço para você entre os melhores.” Muitas instituições da União Soviética, inclusive universidades e empresas estatais, estabeleciam limites ao número de judeus na ocupação de cargos elevados. Não importava que a maioria dos judeus soviéticos não fosse religiosa. A família de Zelensky não observava o sábado nem celebrava o Yom Kippur, o Dia do Perdão. Também consumiam carne suína. Mas seus passaportes soviéticos ainda exibiam a infame “quinta linha”, que assinalava a nacionalidade do indivíduo logo abaixo do nome e da data de nascimento. Tal linha, nos passaportes da família de Zelensky, incluía a palavra evrey – “judeu” –, que os colocava à mercê dos preconceitos de qualquer burocrata que verificasse os documentos da família. O pai de Zelensky, com grande esforço, conseguiu superar esses obstáculos, chegando ao ápice de sua profissão, e sua intenção era ajudar o filho a fazer o mesmo. Acima de tudo, queria que o menino se destacasse em matemática e seguisse carreira naquela área, mas não foi fácil. “Ele tinha dificuldades com aritmética”, disse mais tarde o pai de Zelensky a respeito do filho. “Uma vez eu bati nele, e depois disso ele resolveu as equações em três ou quatro dias.” Mas o velho Zelensky se ressentia de ter sido agressivo. Tal atitude de nada adiantaria para influenciar as ambições do menino.

Zelensky era produto de uma época de mudança, jovem demais para vivenciar a União Soviética como a gerontocracia estagnada e repressiva que seus pais tinham conhecido. Tinha 8 anos quando retornou à Ucrânia com a mãe, em 1987. Nessa época, o palco vinha sendo montado para o colapso do império, apenas quatro anos mais tarde. Moscou estava enfraquecida. A grandiosa experiência com o socialismo fracassara. Mikhail Gorbachev, o reformador relutante, com ligeiro sotaque sulista, estava no segundo ano de seu mandato de secretário-geral do Partido Comunista, e suas tentativas de abrir o sistema sem desmantelá-lo prosseguiam com todo o ímpeto. Mesmo para alguém na idade de Zelensky, essas mudanças não passavam despercebidas. Eram evidentes nas prateleiras vazias dos supermercados, nas filas intermináveis para se conseguir itens essenciais, tais como linguiça e papel higiênico. E ele podia ver tudo isso, claro como o dia, na televisão.

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Nos últimos anos da década de 1980, os censores da televisão soviética ficaram bem mais permissivos, refletindo o impulso mais amplo de Gorbachev, visando enfraquecer o controle estatal dos meios de comunicação. Um dos programas mais famosos da televisão daquela época chamava-se KVN, sigla para “Clube dos Divertidos e Criativos”. Era um programa cômico, mas não no formato conhecido pela maioria das pessoas nos Estados Unidos e na Europa. Não era o tipo de comédia em que os atores, como Richard Pryor ou Eddie Murphy, contam piadas para o público. Nesse caso não havia minimalismo, nenhum sujeito insolente, sozinho diante do microfone, pronto para quebrar tabus.

O KVN mais parecia uma liga esportiva para jovens comediantes. Tratava-se de uma competição entre grupos de artistas, normalmente universitários, que encenavam esquetes e improvisações diante de um painel de jurados, os quais, no final do programa, escolhiam a equipe mais engraçada. Na metade dos anos 1990, todas as universidades e mesmo as escolas de ensino médio no mundo da língua russa tinham pelo menos uma equipe de KVN. Muitas cidades grandes tinham uma dúzia dessas equipes, todas se enfrentando em competições locais e disputando uma vaga no campeonato nacional. O material utilizado era quase sempre precário, e havia muitas piadas boas e tiradas extraordinárias. Também se esperava que os integrantes das equipes soubessem cantar e dançar. Apesar do estilo piegas, o KVN era um programa divertido. Para Zelensky e seus amigos, tratava-se de uma obsessão.

A maioria deles frequentava a Escola nº 95, situada a um quarteirão de distância do mercado central de Kryvyi Rih, não muito longe da universidade, onde o pai de Zelensky trabalhava como professor. Entre uma aula e outra, e depois do horário da universidade, o grupo ensaiava esquetes, fazendo adaptações do que assistiam na liga profissional em programas da televisão. “Gostávamos de tudo, da KVN, do humor, e o que nos motivava era o espírito da atividade, o divertimento”, disse Vadym Pereverzev, que conheceu Zelensky durantes as aulas de inglês da sétima série. As melhores competições realizadas em Moscou também ofereciam um passe para o estrelato que era bem mais acessível a eles do que Hollywood, e mais divertido que as carreiras disponíveis aos jovens de uma cidade empobrecida. “Era um lugar modesto, frequentado pela classe operária, e cada um de nós estava em busca de uma válvula de escape”, disse-me Pereverzev. “No meu entender era uma das nossas principais motivações.”

As apresentações amadoras do grupo no auditório da escola logo atraíram a atenção de uma trupe de comédia local que atuava no teatro para estudantes universitários. Um deles, Oleksandr Pikalov, jovem bonito com sorriso cativante e covinhas no rosto, foi à Escola nº 95 a fim de descobrir talentos. Por acaso, assistiu ao ensaio em que Zelensky representava um ovo frito, com algo por baixo da camisa, simbolizando a gema. A interpretação o impressionou e, pouco depois, eles começaram a atuar juntos. Dois anos mais velho, e já cursando a universidade, Pikalov apresentou Zelensky a alguns expoentes da área da comédia local, incluindo os irmãos Shefir, Boris e Serhiy, que naquela época tinham por volta de 30 anos. Eles perceberam o potencial de Zelensky e se tornaram seus amigos de toda a vida, mentores, produtores e, eventualmente, conselheiros políticos.

Na vizinhança, na década de 1990, a equipe de Zelensky destacou-se desde o começo. Em vez das calças de jogging e jaquetas de couro que os bandidos e fugitivos usavam para ir à escola, o estilo deles aludia aos anos 1950: blazer de tecido xadrez e gravata com pois, calça com suspensórios, camisa branca bem passada e cabelo longo penteado para trás, com bastante gel. Zelensky usava um brinco de argola na orelha. Numa época em que a banda Nirvana estava presente nas estações de rádio, ele e os amigos interpretavam canções dos Beatles e escutavam o rock-and-roll de outros tempos. Para eles, era uma forma de rebeldia, especialmente por se tratar de ideia deles – ninguém se comportava assim na cidade, e essa atitude nem sempre dava certo.

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Certa vez, nos últimos anos da adolescência, Zelensky decidiu tocar guitarra numa passagem subterrânea. Tinha visto uma cena parecida no cinema. Parecia romântico. Mas a cidade era Kryvyi Rih, e Pikalov alertou-o que antes de chegar a tocar a segunda canção alguém apareceria para lhe dar um pontapé no traseiro. “E, de fato, meia hora se passou”, disse-me Pikalov. “Alguém se aproximou e quebrou a guitarra dele.” Mas Zelensky achou graça. Ganhou a aposta. “Disse que chegou até a terceira canção.”

Mesmo assim, a arte dramática não parecia uma carreira viável para Zelensky. Seus pais o pressionavam a se dedicar a um assunto prático e a continuar morando perto de casa. Quando ele ganhou uma bolsa para viajar para Israel, seu pai não concordou, resultando em outra desavença, e mais sapatos foram arremessados pelo apartamento. Zelensky saiu de casa e por algum tempo morou com amigos da KVN. A rebeldia não durou muito. Admirava o pai, mas não tinha intenção de seguir o mesmo caminho que ele escolhera e uma noite, finalmente, após alguns drinques e um cigarro, esclareceu a questão. “Tomamos uns tragos, e eu falei: ‘Pai, o senhor precisa me entender. Eu quero ser o melhor na minha profissão. Nunca vou superar o senhor. E ser pior que o senhor, na sua profissão, não é o que pretendo. Entende? Quero ser o melhor.’ Aquilo deixou o papai triste. Sabe, os homens costumam economizar lágrimas. Por fim, ele deixou que eu fosse embora, como quem deixa um peixe escapar das mãos.”

Ao concluir o ensino médio, Zelensky aceitou um acordo mediado por sua mãe: concordou em se matricular no curso de Direito da universidade de Kryvyi Rih, tendo a vaga ideia de tornar-se diplomata, envolvido em negociações internacionais de grande importância. Pereverzev, seu amigo e colega de classe, decidiu se dedicar à mesma área de estudos. Mas seus sonhos ainda eram os mesmos. No primeiro ano de universidade, juntaram-se a alguns colegas de turma para iniciar o próprio time de KVN e começaram a atuar na liga local. A atração do palco tinha sido irresistível para Zelensky, desde a infância, embora ele jamais tivesse facilidade de atuar diante de grandes plateias. “Subir no palco provoca em mim duas emoções”, ele disse mais tarde. “Primeiro, vem o medo, e só quando a gente supera o medo é que surge a satisfação. Foi isso que sempre me fez voltar ao palco, para cantar, atuar ou qualquer outra coisa.”

Nessa época as apresentações de Zelensky atraíram a atenção de sua futura esposa. Na Escola nº 95, eles tinham se esbarrado várias vezes nos corredores. Mas suas turmas eram rivais – “como os Montéquio e os Capuleto”, disse ela uma vez – e foi somente depois da graduação, quando Zelensky trilhava o caminho para se tornar uma celebridade local devido às suas atuações, que eles começaram a se gostar. Olena também estava envolvida no cenário da KVN. Para aproximá-los, Pikalov, amigo comum, pediu emprestado a ela um VHS, uma cópia de Instinto selvagem, e Zelensky aproveitou a oportunidade para ir até a casa dela e devolver-lhe a fita. “Então nos tornamos mais que amigos”, disse-me ela mais tarde. “Éramos também colegas criativos.” Os quadros por ele montados passaram a vencer competições em Kryvyi Rih e outras regiões da Ucrânia. “Estávamos sempre juntos”, disse Olena. “E tudo foi acontecendo mais ou menos ao mesmo tempo.”

Foi em 1997 que surgiu a grande oportunidade, quando se apresentaram no concurso internacional da KVN em Moscou. Mais de duzentas equipes da antiga União Soviética participaram, e a equipe de Zelensky, que se chamava Transit, empataram em primeiro lugar com o time rival da Armênia. Foi uma estreia sensacional para Zelensky, mas ele se sentiu roubado. Em um vídeo da época, vê-se um galã adolescente com voz rouca, esfregando as mãos nos joelhos enquanto demonstra diante da câmera a sua raiva. O mestre de cerimônias trapaceou, ele disse, ao impedir que os juízes resolvessem o empate. Apesar de ter lidado com tais contratempos esboçando um sorriso cativante, Zelensky não estava nem um pouco disponível a dividir a coroa. Era preciso vencer. Anos mais tarde, ao relembrar suas atuações na infância e competições no palco, Zelensky admitiria que, para ele, “perder é pior que morrer”.

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Embora o campeonato em Moscou não tenha sido uma absoluta vitória para Zelensky, ele atingiu o estrelato. Uma das integrantes do time, Olena Kravets, contou que jamais imaginaram que teriam uma oportunidade como aquela. Para comediantes jovens provenientes de um lugar como Kryvyi Rih, disse ela, a principal liga da KVN “não era somente o pé do monte Parnaso” – morada das musas na mitologia grega –, “era o próprio Parnaso”. Seu cume situava-se ao norte de Moscou, nos estúdios e salas verdes em torno da torre de televisão Ostankino, sede dos maiores locutores no mundo da língua russa. Era onde ficava a sede das principais produções da KVN, na qual Zelensky logo ingressou.

No ano seguinte ao desempenho decisivo em Moscou, a equipe de Zelensky competiu pela primeira vez com o nome de Kvartal 95 – ou Distrito 95, um aceno para a vizinhança da qual fizeram parte durante a infância. Com os irmãos Shefir, os principais redatores e produtores da equipe, Zelensky alugou um apartamento no norte de Moscou, e não mediu esforços para se tornar campeão. Para todas as equipes da KVN, isso requeria cair nas graças do perene mestre de cerimônias da liga, Alexander Maslyakov. Senhor elegante com um sorriso do gato de Cheshire, Maslyakov tinha sido o apresentador de todas as principais competições. Seu apelido no meio dos atores era Barão, e ele e a esposa, a Baronesa, administravam a liga como se fosse uma empresa de família. “A KVN era o império deles”, disse-me Pereverzev. “Era o espetáculo deles.”

De início, o Barão simpatizou com Zelensky e sua equipe, concedendo- -lhes acesso ao principal palco moscovita e à fama decorrente. Mas havia centenas de outras equipes disputando atenção, e a competição era acirrada. “Todos viviam em constante estresse”, disse-me Olena Zelenska. “Sempre lhe indicavam qual era o seu lugar. Sempre que atuávamos em Moscou, eles nos diziam: ‘Lembrem-se de onde vocês vieram. Aprendam a segurar o microfone. Aqui é a Televisão Central. Vocês devem se considerar pessoas de sorte.’ Assim é que as equipes viviam, mas com os sortudos de Moscou era diferente. Eram amados.”

Na liga principal da KVN, Zelensky deu de cara com um tipo de chauvinismo russo que, de forma bem mais negativa, se manifestou cerca de duas décadas depois na invasão da Ucrânia pela Rússia. Conforme Olena colocou quando conversamos sobre a liga KVN: “Aqueles que não eram de Moscou eram sempre tratados como se fossem escravos.”* A hierarquia informal, ela disse, correspondia à visão de que Moscou era uma capital imperial. “As equipes da Ucrânia estavam, é claro, ainda mais abaixo na escada, em relação a todas as cidades russas. Eles toleravam, por exemplo, Ryazan”, cidade da Rússia Ocidental, “mas um lugar como Kryvyi Rih era outra história. Eram incapazes de situá-la no mapa. Por isso precisávamos provar que éramos bons.”

As regras internas não escritas refletiam o papel que a KVN desempenhava no mundo de língua russa. Em meio às ruínas da União Soviética, a KVN se destacava como uma rara instituição cultural que ainda ligava Moscou a seus antigos Estados vassalos. A instituição propiciava aos jovens um motivo para permanecer na matriz cultural russa, em vez de gravitar na direção do ocidente, de Hollywood. A liga tinha postos avançados em cada canto do antigo império, da Moldávia ao Tajiquistão, e em todos esses lugares representavam em russo. Até as equipes dos Estados bálticos, os primeiros países a romper com o governo de Moscou em 1990 e 1991, faziam parte da KVN; o principal encontro anual era realizado na Letônia, no litoral do mar Báltico. De um ponto de vista favorável, as competições poderiam ser considerados um veículo para o soft power da Rússia, da mesma forma que os filmes norte-americanos decidem como devem ser retratados mocinhos e bandidos aos olhos dos espectadores mundo afora. Sendo menos condescendente, a liga poderia ser interpretada como um programa de colonialismo cultural apoiado pelo Kremlin. Em ambos os casos, o centro de gravidade da KVN era sempre Moscou, e a nostalgia voltada para a União Soviética era um critério a ser observado por cada equipe desejosa de vencer. A equipe de Zelensky não foi exceção – sobretudo porque seu melhor momento, no início de 2000, coincidiu com uma troca de poder no Kremlin. Com a eleição de Vladimir Putin, em 2000, o Estado russo abraçou os símbolos e ícones do passado imperial e incentivou a população a não mais se envergonhar da União Soviética. Um dos primeiros atos oficiais de Putin foi alterar a melodia do hino nacional russo, recuperando a versão soviética.

Quanto à KVN, Putin sempre fora um apoiador entusiasmado. Ele costumava comparecer aos campeonatos e gostava de subir ao palco para apoiar os artistas. Em resposta, faziam dele o foco das piadas, embora nenhuma fosse muito direta. Uma das primeiras, quando ele ainda era primeiro-ministro, em 1999, fez troça de seus crescentes números nas pesquisas após o início do bombardeamento da Chechênia naquele verão: “Em termos de popularidade, ele já ultrapassou o Mickey”, disse o comediante, “e está se aproximando de Beavis and Butt-Head.” Sentado no salão ao lado do segurança, Putin reagiu com uma risadinha sem graça e se afundou na cadeira. Menos de um ano depois, ele deixou claro que piadas indiscretas, dirigidas à sua pessoa, não seriam admitidas. Em fevereiro de 2000, durante sua primeira campanha presidencial, um programa de TV satírico, chamado Kukly, ou Fantoches, retratou-o na pele de um gnomo cujo feitiço fazia as pessoas acreditarem que ele era uma linda princesa. Vários partidários da campanha solicitaram que os autores russos do esquete fossem detidos. O programa foi logo cancelado, e a rede de televisão que veiculou o show foi assumida por uma empresa estatal.

Zelensky, à época residindo e trabalhando em Moscou, observava o retorno do autoritarismo na Rússia, com a mesma preocupação de todos os seus companheiros da indústria de entretenimento, e, assim como os demais, precisou se adaptar. Para se manter no topo, a equipe compreendeu que não era sensato ridicularizar o novo líder da Rússia. Durante um esquete em 2001, o personagem de Zelensky declarou que Putin haveria de decidir “não apenas o meu destino, mas o de toda a Ucrânia”. Um ano depois, em uma performance repleta de nostalgia pela União Soviética, um membro da equipe de Zelensky disse que Putin “acabou se tornando um cara decente”. Mas referências tão diretas ao presidente russo eram raras no início da carreira de Putin na comédia. Ele costumava brincar mais sobre a frágil relação entre Ucrânia e Rússia, como no seu esquete mais famoso de 2001, apresentado durante o campeonato ucraniano de KVN.
Intitulado “Homem nascido para dançar”, o esquete apresentava Zelensky no papel de um russo que não consegue parar de dançar enquanto discorre sobre a sua vida a um ucraniano. O roteiro é fraco, e o humor, juvenil. Zelensky toca a própria virilha, no estilo Michael Jackson, e imita a mímica do indivíduo preso dentro de uma caixa, popularizada por Marcel Marceau. No final da cena, o russo e o ucraniano se alternam, como se estivessem transando um com o outro, por trás. “A Ucrânia está sempre ferrando a Rússia”, diz Zelensky. “E a Rússia sempre ferra a Ucrânia.” Essa piada ficava muito aquém do que a Rússia de Putin precisava e merecia. Mas, como exemplo de comédia física, o esquete foi memorável, até mesmo genial. Os gestos de Zelensky, bem mais do que as palavras, transmitiam à plateia uma alegria contagiante, enquanto ele dançava e dava chutes para o alto, no meio das falas, usando calça colante de couro. O que havia de mais cativante no esquete era ele próprio, o sorriso estampado em seu rosto, a evidente satisfação que obtinha em cada segundo no palco. Os jurados adoraram, e naquela noite, diante da audiência de milhões de telespectadores, o time de Zelensky se tornou o campeão da liga na sua Ucrânia natal. Mas, nos maiores palcos de Moscou, a vitória continuaria a escapar deles.

 

* O termo por ela empregado — kholopy — tem um registro doloroso na Ucrânia. Refere-se ao status de escravizado que os governantes russos impunham a alguns de seus súditos na Idade Média, inclusive na área de Kiev. Durante vários séculos, kholop era uma pessoa que podia ser comprada ou vendida por seu senhor, forçada a trabalhar e usada para pagar dívidas. A língua ucraniana moderna resgatou o termo e o desvinculou da sua história opressiva. Hoje em dia, a palavra khopets ou “pequeno kholop”, é um modo informal de se referir a uma pessoa, especialmente um homem, normalmente em tom amigável ou brincalhão.

Trecho do capítulo 4 – “Sr. Zeleny”

O estrelato de Zelensky na liga principal não durou muito. Depois de competir e perder nos campeonatos internacional por três anos seguidos, ele juntou sua trupe e deixou Moscou em 2003. Integrantes do seu time concordam que a partida não foi nada amigável, apesar de todos se lembrarem do episódio de forma distinta. Um deles me disse que o ponto crucial de ruptura com a KVN foi um deboche antissemita. Durante um ensaio, um produtor russo surgiu no palco e perguntou em voz alta, referindo-se a Zelensky: “Onde está aquele judeuzinho?” Segundo a versão de Zelensky, a direção do KVN, em Moscou, ofereceu a ele a função de produtor e redator na televisão russa. Teria de desmontar sua trupe e despachá-la de volta para a Ucrânia, sem ele. Zelensky se recusou, e todos voltaram juntos para sua terra.

Agora, com 20 e tantos anos de idade, eram artistas estabelecidos e até celebridades na Ucrânia. Mas ainda era difícil para os pais de Zelensky aceitarem que ele fizesse da comédia uma carreira. “Sem dúvida”, disse o pai, anos mais tarde, “nós o aconselhamos a fazer algo diferente, e pensamos que seu interesse no KVN fosse algo passageiro, que ele se modificaria, que acabaria escolhendo uma profissão – afinal, ele é advogado. Concluiu o curso no nosso instituto.” De fato, Zelensky tinha concluído os estudos e recebido o diploma de Direito enquanto atuava no KVN. Mas não tinha intenção de atuar como advogado. Considerava a atividade entediante. Quando voltou para casa, em Kryvyi Rih, Zelensky e seus amigos realizaram uma série de casamentos, três sábados seguidos. Olena Kiyashko casou-se com Volodymyr Zelensky em sua cidade natal no dia 6 de setembro de 2003, e Pikalov e Pereverzev se casaram com as respectivas namoradas. No fim daquele ano, quando Olena estava grávida, esperando a filha do casal, Zelensky mudou-se sozinho para Kiev, a fim de montar sua nova produtora, Estúdio Kvartal 95.

Mesmo nessa fase inicial da carreira, a confiança de Zelensky superava a arrogância típica de um jovem encantado com o sucesso precoce. Ele não deixava transparecer a menor dúvida quanto à capacidade de a equipe fazer sucesso – se tinha algum receio, escondia isso de todos, inclusive da esposa. Para um pai de família que aos 20 e poucos anos passava por um aperto financeiro, o emprego oferecido em Moscou deve ter sido mais tentador do que ele admitia. Além do dinheiro, a nova posição o colocaria entre celebridades, produtores e mandachuvas no maior mercado do mundo de língua russa. No entanto, assumiu o risco e optou por um cenário bem menor, confiando nos amigos que o consideravam um líder e faziam com que ele se sentisse à vontade onde quer que fosse.

Ao chegar a Kiev, Zelensky conseguiu uma reunião com um dos maiores executivos de comunicação do país, Alexander Rodnyansky, chefe da emissora que produzia e transmitia a liga da KVN na Ucrânia. O executivo conhecia Zelensky do circuito como um “jovem judeu brilhante”, disse-me ele. Mas ele não esperava que o jovem fosse entrar em seu escritório com uma proposta ousada. Acompanhado dos irmãos Shefir, que eram dez anos mais velhos e mais experientes na indústria, Zelensky tomou a palavra. Queria aparecer com sua trupe no maior palco de Kiev para uma apresentação televisionada em rede nacional, e precisava que Rodnyansky desse a ele o tempo de tela e bancasse a produção, o marketing e outros custos. “O atrevimento desse cara, é o que me lembro”, contou o executivo. “Ele acreditava cegamente em si mesmo, os olhos brilhavam.” Muitos anos depois, Rodnyansky perceberia o perigo escondido nessa qualidade. Ela levaria à falsa crença de que, no cargo de presidente, ele conseguiria dar a volta em Putin e evitar uma guerra na base da negociação. “Acho que a confiança dele o traiu, no final”, disse ele. Mas à época, o charme de Zelensky se impôs nas negociações com Rodnyansky, que concordou em arriscar aquela apresentação.

Provou-se um sucesso tão grande que, pouco tempo depois, seu time no Kvartal 95 fechou um contrato para fazer uma série de shows de variedades que seriam transmitidos na Rússia e na Ucrânia. Seu tom se afastou do estilo saudável e escandaloso do KVN. As piadas assumiram um tom mais crítico, voltadas para a política. Pereverzev, redator dos programas, disse-me que o objetivo era fazer uma versão do Saturday Night Live com elementos de Monty Python. Era um conceito que não fora testado na TV ucraniana. Não havia como saber se a audiência estava preparada. “Era esse o estilo do Zeleny”, disse ele, usando o apelido de Zelensky. (Tanto em russo como em ucraniano, zeleny significa “verde”.) “Essa era a sua principal qualidade de líder. Ele dizia: vamos fazer desse jeito. Então ficávamos com medo, e ele dizia que confiássemos nele. Era assim a nossa vida. E, em certo momento, começamos a confiar nele, porque quando dizia que ia dar certo é porque dava mesmo.”

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