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Encerrada a ocupação, abre-se novo cenário para americanos e afegãos

Os Estados Unidos sem Afeganistão terão de engolir a humilhação da saída atabalhoada e o horror do atentado terrorista de última hora

Por Julia Braun Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h55 - Publicado em 4 set 2021, 08h00
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  • Faltando um minuto para a meia-noite de segunda-­feira, 30 de agosto, 24 horas antes do prazo final, no tom esverdeado das lentes de visão noturna, o general Chris Donahue, comandante da 82ª Divisão Aerotransportada, subiu a rampa da aeronave militar e se tornou o último soldado americano a entrar no último avião de carga entre as dezenas que decolaram, um atrás do outro, levando cerca de 3 000 tropas e esvaziando o aeroporto de Cabul, no Afeganistão — uma imagem divulgada pelo próprio Comando Central para marcar o fim definitivo de vinte desgastantes anos de ocupação, a mais longa guerra da história dos Estados Unidos. Ato contínuo, sob o brilho de todas as luzes acesas, militantes do Talibã, a força que assumiu o governo afegão, adentraram a área sorridentes, dando tiros para o alto e caminhando até a pista para observar, extasiados, os modernos helicópteros Black Hawk deixados para trás, parte dos 85 bilhões de dólares em equipamento militar que o grupo radical no poder ganhou de mão beijada.

    Na nova etapa que se inicia, os Estados Unidos sem Afeganistão terão de engolir a humilhação da saída atabalhoada e o horror do atentado terrorista de última hora, que matou treze soldados americanos (além de 170 civis), e esperar, de dedos cruzados, que o fim da drenagem de vidas e recursos em prol de uma causa perdida consiga, com o tempo, apagar a péssima impressão deixada pela operação. Por sua vez, o Afeganistão sem Estados Unidos tem pela frente o desafio de um governo do qual todo mundo espera o pior, a julgar pela barbárie medieval instalada no domínio prévio do Talibã, uma economia em frangalhos com todas as reservas de moedas estrangeiras depositadas em bancos hostis e grupos terroristas à espreita para abocanhar pontos isolados que lhes sirvam de refúgio. “O terrorismo segue sendo um elemento central da política internacional e assim permanecerá por muitos anos. A ocupação americana do Afeganistão era uma ferramenta de controle que agora terá de ser substituída”, diz Will Walldorf, da Universidade Wake Forest, da Carolina do Norte.

    O DESEMBARQUE DE CABUL - O general Donahue entra no último avião: o passo final da desocupação americana -
    O DESEMBARQUE DE CABUL - O general Donahue entra no último avião: o passo final da desocupação americana – (Jack Holt/US CENTCOM/AFP)

    Outro foco de preocupação em aberto são os cerca de 100 000 afegãos que não conseguiram ir embora (calcula-se que 116 000 pessoas tenham sido evacuadas) e temem punição por terem prestado serviços aos Estados Unidos e a outras potências ocidentais. Somando-se esse contingente à população que simplesmente não quer a volta dos mulás retrógrados e radicais — por mais que o Talibã insista que não é mais o mesmo —, a previsão é que a crise produza até o fim do ano mais de meio milhão de refugiados, com potencial de provocar nova onda migratória na direção da Europa — o que deixa os governos do continente de cabelo em pé. Enquanto os aliados dos Estados Unidos decidem como vão lidar com a nova situação — a maioria ainda hesita em reconhecer o novo governo afegão —, seus rivais tratam de ocupar espaços.

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    Antes mesmo da retirada americana, a China já recebia mulás afegãos com rapapés e ofertas de negócios — embora a fronteira entre os dois países tenha menos de 100 quilômetros, o Afeganistão é peça-chave para as ambições geopolíticas chinesas e um entreposto importante na ambiciosa Nova Rota da Seda. Da mesma forma, a Rússia, que na encarnação URSS era a inimiga número 1 do Talibã (foi para combater o invasor soviético que o grupo se formou), quer enterrar desavenças e trabalhar em conjunto para conter focos de terrorismo nos ex-satélites asiáticos. Até o xiita Irã, adversário natural dos sunitas talibãs, está fornecendo apoio financeiro e militar aos vizinhos, sob a pragmática justificativa de que o inimigo de seu inimigo é seu amigo.

    Encerrada a desocupação, Joe Biden fez um discurso defendendo com unhas e dentes a ação, que qualificou de “grande sucesso”. “A principal missão de um presidente não é proteger a América das ameaças de 2001, mas das ameaças de 2021 e do futuro”, declarou, sem convencer ninguém — o apoio ao fim da guerra no Afeganistão (quem pode ser contra?), que era de 69% da população, desabou 20 pontos nas últimas duas semanas. “Se a atividade terrorista no país aumentar e a situação dos direitos dos afegãos piorar, o desempenho do Partido Democrata pode ser prejudicado nas eleições legislativas do ano que vem”, aponta Ross Harrison, do Instituto Oriente Médio (MEI), de Washington. O futuro, como se vê, não está fácil para ninguém.

    Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754

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