Faltando um minuto para a meia-noite de segunda-feira, 30 de agosto, 24 horas antes do prazo final, no tom esverdeado das lentes de visão noturna, o general Chris Donahue, comandante da 82ª Divisão Aerotransportada, subiu a rampa da aeronave militar e se tornou o último soldado americano a entrar no último avião de carga entre as dezenas que decolaram, um atrás do outro, levando cerca de 3 000 tropas e esvaziando o aeroporto de Cabul, no Afeganistão — uma imagem divulgada pelo próprio Comando Central para marcar o fim definitivo de vinte desgastantes anos de ocupação, a mais longa guerra da história dos Estados Unidos. Ato contínuo, sob o brilho de todas as luzes acesas, militantes do Talibã, a força que assumiu o governo afegão, adentraram a área sorridentes, dando tiros para o alto e caminhando até a pista para observar, extasiados, os modernos helicópteros Black Hawk deixados para trás, parte dos 85 bilhões de dólares em equipamento militar que o grupo radical no poder ganhou de mão beijada.
Na nova etapa que se inicia, os Estados Unidos sem Afeganistão terão de engolir a humilhação da saída atabalhoada e o horror do atentado terrorista de última hora, que matou treze soldados americanos (além de 170 civis), e esperar, de dedos cruzados, que o fim da drenagem de vidas e recursos em prol de uma causa perdida consiga, com o tempo, apagar a péssima impressão deixada pela operação. Por sua vez, o Afeganistão sem Estados Unidos tem pela frente o desafio de um governo do qual todo mundo espera o pior, a julgar pela barbárie medieval instalada no domínio prévio do Talibã, uma economia em frangalhos com todas as reservas de moedas estrangeiras depositadas em bancos hostis e grupos terroristas à espreita para abocanhar pontos isolados que lhes sirvam de refúgio. “O terrorismo segue sendo um elemento central da política internacional e assim permanecerá por muitos anos. A ocupação americana do Afeganistão era uma ferramenta de controle que agora terá de ser substituída”, diz Will Walldorf, da Universidade Wake Forest, da Carolina do Norte.
Outro foco de preocupação em aberto são os cerca de 100 000 afegãos que não conseguiram ir embora (calcula-se que 116 000 pessoas tenham sido evacuadas) e temem punição por terem prestado serviços aos Estados Unidos e a outras potências ocidentais. Somando-se esse contingente à população que simplesmente não quer a volta dos mulás retrógrados e radicais — por mais que o Talibã insista que não é mais o mesmo —, a previsão é que a crise produza até o fim do ano mais de meio milhão de refugiados, com potencial de provocar nova onda migratória na direção da Europa — o que deixa os governos do continente de cabelo em pé. Enquanto os aliados dos Estados Unidos decidem como vão lidar com a nova situação — a maioria ainda hesita em reconhecer o novo governo afegão —, seus rivais tratam de ocupar espaços.
Antes mesmo da retirada americana, a China já recebia mulás afegãos com rapapés e ofertas de negócios — embora a fronteira entre os dois países tenha menos de 100 quilômetros, o Afeganistão é peça-chave para as ambições geopolíticas chinesas e um entreposto importante na ambiciosa Nova Rota da Seda. Da mesma forma, a Rússia, que na encarnação URSS era a inimiga número 1 do Talibã (foi para combater o invasor soviético que o grupo se formou), quer enterrar desavenças e trabalhar em conjunto para conter focos de terrorismo nos ex-satélites asiáticos. Até o xiita Irã, adversário natural dos sunitas talibãs, está fornecendo apoio financeiro e militar aos vizinhos, sob a pragmática justificativa de que o inimigo de seu inimigo é seu amigo.
Encerrada a desocupação, Joe Biden fez um discurso defendendo com unhas e dentes a ação, que qualificou de “grande sucesso”. “A principal missão de um presidente não é proteger a América das ameaças de 2001, mas das ameaças de 2021 e do futuro”, declarou, sem convencer ninguém — o apoio ao fim da guerra no Afeganistão (quem pode ser contra?), que era de 69% da população, desabou 20 pontos nas últimas duas semanas. “Se a atividade terrorista no país aumentar e a situação dos direitos dos afegãos piorar, o desempenho do Partido Democrata pode ser prejudicado nas eleições legislativas do ano que vem”, aponta Ross Harrison, do Instituto Oriente Médio (MEI), de Washington. O futuro, como se vê, não está fácil para ninguém.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754