O trabalho da desenhista Laura Gao, de 23 anos, se tornou um sucesso em países tão diversos quanto os Estados Unidos, a Itália e o Irã. Em comum, todos eles sofrem com os efeitos catastróficos da pandemia do novo coronavírus. Laura nasceu em Wuhan, na China, onde surgiram os primeiros casos de Covid-19. Mesmo vivendo nos EUA desde os 3 anos, ela mantém laços com Wuhan e se incomodava com comentários preconceituosos que escutava a respeito da cidade onde estão os seus avós. Decidiu, então, produzir um quadrinho para apresentar ao mundo a história da cidade antes da chegada do coronavírus (leia aqui, em inglês). Nessa entrevista para VEJA, ela fala sobre o racismo contra os chineses e pede que os brasileiros respeitem o isolamento social: “qualquer atalho custará mais vidas e mergulhará o Brasil numa crise ainda mais duradoura”. Leia os principais trechos da conversa abaixo:
Qual foi a motivação por trás do quadrinho? Por que sentiu que era importante apresentar aspectos culturais e históricos de Wuhan neste momento? A história sempre é escrita por aqueles que têm a voz mais alta e, infelizmente, algumas dessas vozes atuais são preconceituosas e mal informadas. É muito importante para mim que esse quadrinho ajude a dissipar a imagem terrível que muitos têm da minha cidade natal. Quero mostrar às pessoas a beleza e a humanidade de Wuhan.
Chamou a minha atenção o fato de você ter apresentado alguns dos pratos típicos de Wuhan no quadrinho. Foi uma resposta a quem diz que a Covid-19 surgiu por conta da alimentação dos chineses? É horrível ouvir as pessoas dizendo isso, especialmente porque toda cultura tem a sua própria “comida estranha”. Por exemplo, os meus parentes na China ficam loucos quando escutam que os americanos comem vegetais crus e carnes mal passadas. Eles nunca fariam isso porque acreditam que é anti-higiênico ingerir alimentos que não estão totalmente cozidos. Pessoas em muitos países da Ásia também comem caracóis, cervos, sapos e jacarés. Ninguém se importa com isso. Mas minha intenção de mostrar a culinária de Wuhan não estava diretamente ligada aos comentários racistas sobre a comida. Essa é uma das minhas partes favoritas da cidade. Fico satisfeita de que as pessoas podem ser expostas à boa culinária de Wuhan em vez de focarem em aspectos negativos.
Você mudou para os EUA com 3 anos. Como foi a experiência de crescer como uma imigrante chinesa no país? Eu cresci numa cidade pequena do Texas, onde as pessoas eram mais conservadoras e faziam comentários racistas esporadicamente. Não eram coisas violentas ou perigosas, mas me faziam sentir vergonha de não ser branca. Eram, por exemplo, comentários sobre como os asiáticos não eram tão bonitos quanto os brancos ou como éramos crianças “nerds” e sem personalidade. As pessoas tiravam sarro da minha comida, do sotaque dos meus pais e do meu nome chinês, o que me fez adotar o nome Laura, em inglês, quando estava na primeira série. Já na faculdade, eu me mudei para São Francisco, que é um lugar mais liberal e diverso, e não tive muitas experiências com racismo.
O presidente Donald Trump por muito tempo chamou a Covid-19 de “vírus chinês”. Sua vida mudou nos EUA desde o início da pandemia? O racismo tem sido um problema desde que Trump foi eleito. Quando as notícias sobre o vírus chegaram, minha raça estava no topo das discussões. Pessoas ao meu redor estavam alertando umas às outras para que não visitassem lugares com muitos asiáticos, algo impossível de se fazer em São Francisco. Eu também recebia olhares estranhos ou temerosos quando dizia que era de Wuhan. Na época, estava com uma tosse leve e ficava com medo de que os outros gritassem comigo no trabalho ou nas ruas. Por conta das falas de Trump, muitos dos seus apoiadores se sentiram no direito de agir da mesma forma, embora ele tenha parado de se expressar dessa forma. Tivemos um caso recente na Filadélfia em que um casal apanhou no transporte público por isso.
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Clique e AssineQual foi a pior coisa que você ouviu sobre a sua cidade ou sobre a China desde que a pandemia teve início? Já escutei tantas coisas que não consigo nem decidir qual delas é a pior. São comentários dizendo que os chineses merecem morrer, que nós estamos tentando infectar o mundo de propósito ou que os asiáticos mereciam ser atacados para evitar que o vírus se espalhasse.
No Brasil, tivemos episódios recentes em que o deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro da Educação fizeram comentários racistas sobre a China e insinuaram que o país escondia os números ou tentava dominar o mundo. Como você reage diante dessas situações? Esse é um assunto que está numa zona cinzenta onde não há um vilão ou um herói, não existe um certo ou errado. O governo chinês poderia ter feito um trabalho melhor para alertar o mundo? Provavelmente. Outro país faria um trabalho melhor se o vírus surgisse em seu território? É só olhar para as evidências históricas de outras pandemias, que tiveram diferentes origens, para saber que provavelmente isso não aconteceria. Apontar dedos nesse momento não ajuda ninguém. Pelo contrário, isso só tira o foco de questões realmente importantes, como garantir recursos para os hospitais, manter o isolamento social para conter o vírus e ajudar as pessoas que serão afetadas pelos problemas econômicos decorrentes da pandemia.
O que o Brasil pode aprender com Wuhan na luta contra a Covid-19? Baseado na experiência de Wuhan, digo aos brasileiros que o melhor jeito de vencer o vírus é isolar completamente todas as pessoas para que a doença não se espalhe. É uma medida extrema, mas qualquer atalho custará mais vidas e mergulhará o Brasil numa crise ainda mais duradoura.
Como você quer que Wuhan seja vista após essa pandemia? Será possível mudar a percepção de que essa é a cidade onde o vírus surgiu? Pode levar algum tempo para as pessoas lembrarem de Wuhan por outros motivos para além do vírus. No entanto, creio que se todos continuarem compartilhando suas histórias, nós poderemos nos lembrar que esse foi um problema global e que todos se uniram para combatê-lo. Quando meu quadrinho viralizou, eu me conectei com muitas pessoas que estavam preocupadas com o racismo por serem asiáticas, iranianas ou italianas. Muitos também disseram que nunca haviam escutado sobre Wuhan, mas agora colocaram a cidade no topo da lista de lugares para conhecer.