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Cortejo do desespero

Habitantes da América Central formam uma colossal caravana de migrantes. Com reduzida chance de entrar nos EUA, são usados por políticos de vários países

Por Duda Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 26 out 2018, 07h00 - Publicado em 26 out 2018, 07h00

A 200 quilômetros de Tegucigalpa, a capital de Honduras, a cidade de San Pedro Sula ostenta uma das maiores taxas de homicídio do mundo. São 59 mortes a cada 100 000 habitantes, quase o dobro do que se registra no Brasil. Os muros das casas frequentemente aparecem pichados com as iniciais das maras, como são chamadas as gangues formadas nas prisões americanas por condenados que acabaram sendo extraditados dos Estados Unidos para seu país de origem nos anos 1980. As mais conhecidas são MS, de Mara Salvatrucha, e M18, de Barrio 18. Hoje, as maras são caracterizadas pela selvageria, com decapitações, estupros e esquartejamentos a machadadas.

Foi de San Pedro Sula que, no sábado 13, o ex-deputado hondurenho Bartolo Fuentes partiu para uma longa caminhada com um grupo de 700 pessoas. Fartas da violência e da falta de emprego, elas sonham com uma vida menos miserável nos Estados Unidos. Dez dias depois da partida, ao entrarem pela fronteira sul do México, já eram 7 000. Pelo número, o grupo já pode ser considerado a maior caravana de migrantes de que se tem notícia no planeta. Em alguns dias, a ele deve juntar-se um contingente menor, de 1 500 indivíduos, que partiu logo depois. Entre as pessoas que compõem essa massa gigantesca que se perde de vista nas estradas mexicanas, há algumas que já tinham sido deportadas dos Estados Unidos. Também sobressaem as crianças e os carrinhos de bebê. Quase toda essa gente é oriunda de Honduras, Guatemala e El Salvador, a trinca de países miseráveis e violentos conhecida como Triângulo do Norte. Até alcançarem a fronteira com os EUA, eles terão de percorrer ainda 1 800 quilômetros, pouco menos que a distância entre São Paulo e Salvador. Quando terminarem o trajeto, o que deve ocorrer em algumas semanas, eles vão se dispersar para penetrar nos Estados Unidos, provavelmente com a ajuda de coiotes, que orientam as redes de tráfico de pessoas. De cada migrante que coloca em território americano, o coiote cobra entre 4 000 e 10 000 dólares.

A quantidade de interessados e a velocidade com que eles se uniram à caravana dão a dimensão da tragédia dos moradores desses países. Também dizem muito sobre as condições que esses migrantes enfrentam ao atravessar o território mexicano. Eles são frequentemente sequestrados e coagidos pelos cartéis de droga e por outros grupos armados. “As caravanas são atraentes porque oferecem uma forma de realizar a viagem de maneira segura, a salvo dos contrabandistas e do crime organizado”, diz o historiador e cientista político americano Louis DeSipio, da Universidade da Califórnia em Irvine e especialista em migrações. “Os migrantes também entendem que a imprensa lhes dá certa proteção.” O problema é que essa atenção torna mais difícil a entrada nos Estados Unidos, pois o presidente Donald Trump já avisou que usará de todos os meios para impedir o ingresso desses estrangeiros. Em abril, outra caravana, menor, fez o mesmo percurso. Eram cerca de 1 200 migrantes. Destes, aproximadamente 200 conseguiram entrar nos EUA. Desta vez, apesar de o total ser maior, espera-se que somente algumas centenas alcancem o objetivo. “Adverti a patrulha da fronteira e o Exército de que se trata de uma emergência nacional”, disse Trump.

Ainda que poucos consigam cruzar a fronteira daqui a algumas semanas, o uso político da caravana já terá se consumado. Em Honduras, o episódio foi de enorme valia para o Libre, partido de oposição liderado pelo ex-presidente Manuel Zelaya, conhecido por ter se refugiado, usando chapéu de caubói, na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa, em 2009. Bartolo Fuentes, o ex-deputado que organizou a marcha pelas redes sociais, dirigiu seu carro à frente do cortejo até ser detido por entrar de maneira irregular na Guatemala. “Trump deve aplicar sanções ao governo de Honduras, que condenou o povo à miséria e à violência. É um governo corrupto, usurpador, que participou de uma fraude colossal, assassinou pessoas nas ruas e provocou essa migração”, disse Fuentes pouco antes de ser preso.

RISCO – Caminhão com migrantes na cidade de Tapachula, no México: sem poder contê-los, a saída é ajudá-los (Pedro Pardo/AFP)

No início da caravana, os migrantes empunhavam cartazes contra o governo de Honduras, do presidente Juan Orlando Hernández, de centro-­direita. Depois, os cartazes sumiram. “O partido Libre quer deslegitimar o presidente Orlando Hernández e dizer que ele é incapaz de gerar as condições econômicas e sociais para evitar a emigração”, afirma o cientista político hondurenho Edgardo Rodriguez, da Universidade Nacional Autônoma de Honduras. Só que Fuentes não imaginava que sua iniciativa pudesse ganhar tamanha envergadura. Assim que os organizadores passaram a ser responsabilizados pela confusão, ele negou sua participação e argumentou que não tinha poder para tanto. Investigado pelo Ministério Público de Honduras, Fuentes já pode se considerar um vencedor. “O partido Libre e Manuel Zelaya estão intimamente conectados com o nicaraguense Daniel Ortega e o venezuelano Nicolás Maduro. Com essa caravana, eles tiraram o foco dos refugiados da Venezuela e da crise política na Nicarágua”, diz Rodriguez.

Outro político que também está usando a massa de gente em benefício próprio é Trump. Para o dia 6 de novembro estão marcadas as eleições legislativas nos Estados Unidos. Todas as cadeiras da Câmara dos Deputados e 35 dos 100 assentos no Senado estão em disputa. Para os dois partidos, será fundamental empolgar a base de eleitores para que eles saiam de casa para votar. Entre os eleitores democratas, o tema da imigração importa pouco. Apenas 19% acham que isso seja um grande problema. Entre os republicanos, o assunto é bem mais sensível: 75% acreditam ser algo muito importante. Trump, que tem proferido discursos de campanha praticamente todos os dias para ajudar seus colegas republicanos, não demorou a entender o trunfo que lhe caiu nas mãos. “Toda vez que você vir uma caravana ou pessoas vindo ilegalmente, pense nos democratas e culpe-os por não nos dar os votos para mudar nossas patéticas leis de imigração. Lembre-se das eleições legislativas”, disse Trump. O presidente também afirmou que entre os integrantes da caravana havia “desconhecidos do Oriente Médio”. Na terça 23, ele reconheceu que não tinha evidências disso, mas declarou que poderia voltar com a acusação mais adiante.

Trump ainda ameaçou suspender a ajuda para os três países do Triângulo do Norte, na América Central. Mesmo que esse dinheiro seja canalizado por ONGs e dependa da aprovação do Congresso, um corte de recursos só aprofundaria o problema. “Assim como os europeus ajudam nações do norte da África e do Oriente Médio, os Estados Unidos têm dado assistência à América Central. São projetos de infraestrutura, de educação e saúde. Se isso acabar, haverá mais incentivos para a população migrar”, diz Juliana Costa, professora de relações internacionais da Fecap, em São Paulo. Todos os países por onde passou a caravana tentaram fazer com que suas leis fossem respeitadas e alardearam os riscos envolvidos. Sem poderem conter o movimento, os governos limitaram-se a auxiliar as pessoas por questões humanitárias. Com o tema sendo levado para a política e sem uma solução no horizonte, outras caravanas podem surgir.

Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição nº 2606

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