Na campanha presidencial de 2016, o republicano Donald Trump pediu à Rússia para hackear os emails da adversária democrata Hillary Clinton. “Rússia, se está ouvindo, espero que consiga encontrar os 30 mil emails de Hillary Clinton” disse, numa referência ao fato de que a candidata havia usado um servidor de email privado quando era secretária de Estado do governo de Barack Obama.
A Rússia estava ouvindo. E usou o Wikileaks de Julian Assange para vazar emails da campanha de Clinton. A esta altura, o presidente americano não pode ser acusado de desistir de surpreender até seus aliados em matéria de quebrar a etiqueta do cargo e flertar com violação de leis. Numa espantosa entrevista à rede ABC, na quarta-feira, 12, Trump disse que não havia nada errado no fato de seu filho Don Jr. ter se encontrado na Trump Tower com um grupo de russos com ligações com o Kremlin, que supostamente oferecia sujeira sobre Clinton.
“Creio que ouviria… não há nada de mau em ouvir”, disse Trump, ao ser perguntado na ABC News o que faria se um país como a Rússia ou a China lhe oferecesse informação.
A declaração de Trump contrasta com a lei eleitoral americana, que determina especificamente ser crime oferecer ou aceitar dinheiro ou “outra coisa de valor” de indivíduo estrangeiro ou entidade estrangeira.
O repórter lembrou Trump que o diretor do FBI, indicado por ele, depôs no Congresso sobre a questão e fora inequívoco. “Se qualquer membro de qualquer campanha for contatado por qualquer nação estado ou seu representante sobre influenciar ou interferir nume eleição, o FBI quer saber”, dissera aos legisladores. Trump respondeu ao jornalista: “O diretor do FBI está errado.”
A reação às declarações de Trump foi imediata. Deputados e senadores republicanos que disputarão a reeleição em 2020 fugiram de repórteres nos corredores do Capitólio para não ter de condenar o líder. Mas um grande aliado de Trump, o senador republicano Lindsay Graham, disse que aceitar cooperação dos russos é um erro sob a lei.
Graham logo devolveu a bola para o campo democrata, acusando a campanha de Clinton de pagar pelo infame dossiê Steele, elaborado por um ex-agente do serviço secreto britânico, que apurava ligações de Trump com a Rússia. Christopher Steele, de fato, entrou primeiro em contato com o FBI, em 2016, alarmado com o que apurara. O mesmo Lindsay Graham, então anti-Trump e alarmado com o dossiê Steele, sugeriu ao senador John McCain, falecido no ano passado, que entregasse o relatório ao FBI.
O também republicano senador Mitt Romney, que ainda tem ambições presidenciais, rebateu a situação descrita por Trump. “Seria impensável um candidato a presidente aceitar, encorajar ou participar de qualquer forma”, afirmou. “Atacaria o coração da nossa democracia,” concluiu.
Já a presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, disse que buscava palavras para classificar o que Trump declarou sobre a ajuda externa a sua campanha eleitoral. Ela acusou o presidente de perpetuar um assalto à democracia americana.
“O que o presidente disse mostra claramente, uma vez mais, que ele não sabe a diferença entre o certo e o errado,” afirmou.
Em 2000, o então candidato e vice-presidente democrata Al Gore estava ensaiando para um debate com o republicano e futuro presidente George W. Bush. Os candidatos sempre ensaiam com um aliado posando de adversário, para afiar sua capacidade de reagir com eficácia a ataques. O “Bush” de Gore era seu amigo, o ex-deputado Tom Downey.
Dias antes do debate, Downey recebeu em casa um envelope com um livrete de briefings sobre temas potenciais do debate e uma fita de vídeo que conteria imagens de Bush ensaiando. Downey fechou o envelope e telefonou para o diretor da campanha Gore, Bill Daley, dizendo que ia entregar o material imediatamente para o FBI.
Os assessores de Gore não sabiam se o conteúdo do envelope era real ou uma cilada para acusar a campanha democrata de truques sujos. Para afastar qualquer suspeita e não contaminar o debate com informação obtida ilegalmente, Downey foi excluído dos ensaios. Uma mulher foi investigada pelo FBI foi condenada a um ano de prisão pelo roubo do material.
Duas décadas depois, o presidente eleito com ajuda de uma campanha de desinformação montada por uma potência nuclear hostil, acena para os serviços de inteligência do mundo: espionem meus adversários e me passem a sujeira que descobrirem. Numa boa.