Quando o Ministério da Defesa da Rússia anunciou, na segunda-feira 28, que o aparato militar em torno da capital ucraniana, Kiev, seria reduzido “drasticamente”, chegando a aventar até um possível encontro entre os presidentes Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky, os líderes ocidentais correram ao telefone para avaliar o que parecia ser um primeiro movimento russo na direção de um cessar-fogo. No fim, optaram pelo ceticismo, visto que as bombas não pararam de cair, ao menos até quinta-feira 31 de março. O que é ruim para a Ucrânia, contudo, pode render pontos para Emmanuel Macron. Faltando poucos dias para o primeiro turno da eleição francesa, no dia 10, o presidente, que busca um segundo mandato, teve de novo a chance de se posicionar, ao lado do americano Joe Biden e do britânico Boris Johnson, no núcleo que determina as respostas do Ocidente à inaceitável invasão russa. Além de ressaltar seu papel de estadista influente, a guerra reduziu sua presença em debates e comícios, por estar “ocupado com coisas mais relevantes”.
Nada mau para quem lidera todas as pesquisas e quer continuar assim. Com 28% das intenções de voto, Macron tem confortável vantagem sobre a ultradireitista Marine Le Pen, com 17,5%. No segundo turno, a previsão é de que vença por 57% a 43%. Mas baques anteriores na popularidade levam sua equipe a tratar a dianteira com cautela. Le Pen, que aprendeu a amenizar posições para se tornar mais palatável, chegou a ultrapassá-lo nas pesquisas em alguns momentos. A entrada do mais direitista ainda Éric Zemmour na corrida, no fim do ano passado, chacoalhou o cenário eleitoral — escritor e frequentador de programas de TV, ele arrastou multidões para comícios onde exaltava as glórias passadas da França e atribuía todas as mazelas do país aos imigrantes. O entusiasmo inicial não durou e Zemmour está hoje em quarto lugar, com 11% das intenções de voto — atrás até do esquerdista radical Jean-Luc Mélenchon (14%). Curiosamente, tanto Zemmour quanto Mélenchon se desculparam por terem, no passado, tecido elogios a Putin.
Uma certeza, anotada por todos os candidatos, foi a virada da França para a direita, caracterizada pela latente insatisfação na área rural e entre os trabalhadores menos qualificados — tradicionais redutos da esquerda e que hoje se preocupam mais com o preço da gasolina e da energia e com a deterioração dos serviços públicos — e pelo desinteresse dos jovens pela política, o que aumenta o peso do eleitor mais velho e conservador. Hoje, 37% do eleitorado se declara de direita, 4 pontos a mais do que na votação de 2017, e 20% se dizem de esquerda, 5 pontos a menos do que há cinco anos. La gauche francesa, força política e intelectual cuja influência ia muito além das fronteiras, implodiu, pulverizada em vários partidos pequenos. La droite, ao contrário, apoiando-se no ressentimento contra imigrantes e batendo na tecla nacionalista, ganhou espaço.
O próprio Macron, que saiu do mercado financeiro para a vida pública e é até hoje visto como “presidente dos ricos”, ajustou o perfil liberal e técnico aos novos tempos. Hoje ele defende com vigor a preservação do patrimônio cultural francês frente a influências de fora, abrindo fogo contra o woke — uma espécie de versão radical do politicamente correto nascida nos Estados Unidos. Além disso, ampliou os poderes da polícia em nome do combate à criminalidade e aprovou leis para defender os “valores da República” contra o “separatismo islâmico”. A atuação do governo durante a pandemia, duramente criticada no início, acabou sendo bem-aceita pela população, sobretudo devido às medidas de preservação de empregos e salários. Com esse currículo, e a sempre eficiente bandeira de melhor opção entre dois extremos, o presidente passou à frente dos adversários e assumiu o posto de favorito nas eleições.
No plano externo, a ambição de Macron de liderar uma Europa unida e fortalecida ganhou tração com a saída de cena da alemã Angela Merkel. O novo chanceler, Olaf Scholz, ainda está se aclimatando ao cargo e o outro rival em potencial, Mario Draghi, da Itália, economista amplamente respeitado por sua atuação no Banco Central Europeu, tem problemas suficientes dentro de casa. A guerra na Ucrânia veio acentuar o protagonismo de Macron em uma situação acompanhada de perto pela França e por toda a Europa.
Levantamento do Centro de Pesquisas Políticas da universidade Sciences Po Paris mostrou que a invasão é fato decisivo para 50% dos franceses e 90% têm medo de suas consequências. Visitando Putin, atuando em reuniões da Otan (organismo do qual, no passado, decretou “morte cerebral”) e cultivando a imagem de negociador, Macron vem recebendo manifestações de apoio de todos os lados — até da adversária Marine Le Pen. “Fotografias com líderes europeus reunidos para discutir a guerra têm um peso significativo na construção de um perfil de liderança a ser seguida”, diz o pesquisador Gilles Ivaldi, um dos responsáveis pelo estudo.
Partidário de uma União Europeia que toma decisões em bloco e independe de alianças, Macron sempre insistiu na necessidade de cada país investir em sua defesa, em vez de riscar esse item do orçamento e confiar na proteção da Otan, aliança em que a voz dos Estados Unidos fala mais alto. Agora, vê sua proposta ser aceita até pela Alemanha, país ferrenhamente antimilitarista desde o fim da II Guerra, que, após a invasão da Ucrânia, resolveu se armar. “Ele tem sido o agente diplomático europeu mais ativo no conflito”, confirma Tara Varma, pesquisadora do Conselho Europeu de Relações Exteriores. Com a Rússia emitindo sinais divergentes — otimismo nas negociações de paz e bombardeios onde anunciou que iria recuar —, o caos humanitário se ampliando na Ucrânia e países europeus movidos a gás russo cogitando racionar energia, Macron se prepara para apostar as fichas do seu futuro. Ao que tudo indica, com boas chances de ganhar.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783