Chuva de mísseis: a vingança de Putin contra os avanços da Ucrânia
No esforço para apagar a noção de que o inimigo está levando a melhor na guerra, o líder russo dá provas de seu poderio bélico
Inaugurada depois da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, a ponte de 20 quilômetros sobre o Estreito de Kersh, com acesso simultâneo para trens e carros, serviu a dois propósitos: solidificar o domínio russo sobre a província que tomou da Ucrânia, com base em um referendo fraudado, e, desde a nova invasão do vizinho em fevereiro, viabilizar o fluxo vital de tropas e suprimentos para a guerra. Foi, portanto, um duplo baque, no orgulho e na operação militar do Kremlin, a misteriosa explosão que, no sábado 8, danificou sua estrutura e bloqueou a passagem. A ponte reabriu horas depois, mas o estrago perdurou em forma de humilhação — Vladimir Putin, o todo-poderoso presidente autocrata da Rússia, sofrera mais uma derrota nas mãos do inimigo ucraniano, que não assumiu a autoria do atentado, mas nem precisava.
Putin prometeu vingança, e cumpriu. Ao longo da semana, despejou uma chuva de mísseis sobre dezenove centros urbanos na Ucrânia, entre eles a capital, Kiev, que causou a morte de ao menos catorze civis. O ataque a locais e estruturas sem relação direta com a frente de batalha desgasta o discurso oficial de que executa uma “operação militar” contra “traidores neonazistas” no país vizinho, mas foi aplaudido na Rússia — e, para Putin, isso é o que importa. Encostado na parede por uma sequência de erros na ofensiva ucraniana, ele vem apertando cada vez mais os parafusos da monumental máquina bélica e estratégica a seu dispor. A questão é: até onde pretende chegar?
Acusando o golpe da explosão na ponte, Putin apareceu em rede nacional vociferando sobre o “ataque contra uma infraestrutura civil”, que levou à prisão de oito pessoas, entre elas cinco russos, segundo o anúncio oficial. “O regime de Kiev se colocou em pé de igualdade com os mais odiosos grupos terroristas internacionais. É simplesmente impossível deixar crimes desse tipo sem resposta”, bradou o presidente. A resposta prometida se traduziu em 84 mísseis e drones de destruição lançados apenas no primeiro dia, o mais vasto ataque simultâneo a cidades ucranianas desde o início da guerra. Mesmo em Zaporizhzhia, sede da maior usina atômica da Europa e uma das quatro áreas anexadas neste mês por Moscou em outra rodada de referendos fraudados, caíram bombas.
O ataque foi amplamente condenado até pelos semialiados China e Índia — no caso deles, indiretamente, em mensagem a favor da paz negociada. O G7 se reuniu emergencialmente e o presidente americano Joe Biden prometeu mandar mais armas para a Ucrânia e atender ao pedido do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky de entrega urgente de sistemas antimísseis, reforçando o papel fundamental do Ocidente nesta guerra: armar e treinar as forças da Ucrânia, que resistem bravamente.
Tanto o bombardeio quanto as anexações e, antes delas, a convocação de 200 000 reservistas anunciados por Putin são medidas tomadas, acima de tudo, para acalmar a linha dura da cúpula russa, inconformada com a incapacidade de suas tropas de esmagar um inimigo supostamente muito mais fraco. Encaixa-se nesse propósito a nomeação para o comando-geral da invasão de Sergei Surovikin, o “general do Armagedom” — em menos de 48 horas no cargo, ele deu o sinal verde para os bombardeios recentes. “Putin quer mostrar que a situação está sob controle, apesar das críticas”, afirma Alex Brideau, analista da consultoria de pesquisa de risco político Eurasia. Distante da frente de combate, o ataque de mísseis destruiu redes de fornecimento de água e de energia e despedaçou vidraças e janelas em diversas áreas, interrompendo serviços imprescindíveis e aumentando os riscos para a população civil às vésperas do inverno rigoroso.
Mas Putin também cumpriu uma agenda externa ao lançar mísseis sobre a Ucrânia: provar para o Ocidente que não está para brincadeiras e deixar subentendida a ameaça que ele mesmo proferiu de, em última instância, apelar para armas nucleares táticas, um arsenal da Guerra Fria que nunca foi usado. “O Kremlin acredita que precisa convencer o Ocidente a forçar Zelensky a negociar”, analisa Vladimir Frolov, do instituto de pesquisas americano Carnegie Endowment for International Peace. A Rússia tem bala na agulha para bombardear a Ucrânia inteira, mas isso resultaria em isolamento total e acirraria o ímpeto de retaliação da Otan, a aliança militar ocidental, além de mergulhar o país no atoleiro de uma ocupação militar em território hostil. Ciente dos riscos desse cenário, o mais provável é que Putin esteja mesmo, por enquanto, buscando firmar posição e pressionar o governo de Kiev a aceitar seus termos de retirada. Por enquanto.
Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811