As contradições na luta contra o racismo nos Estados Unidos
O paradoxo ecoa no país: 25% dos negros vivem abaixo da linha de pobreza, o desemprego entre eles é o dobro e a taxa de prisão é seis vezes maior
“Acreditamos que estas verdades são autoevidentes: que todos os homens nascem iguais, dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre eles a vida, a liberdade e a busca da felicidade.” (Thomas Jefferson, na Declaração de Independência dos EUA, 1776)
“Não consigo respirar.” (George Floyd, 2020)
No século XVIII, discutiam-se ideias revolucionárias (mais tarde chamadas “liberais”), como a tese proposta por John Locke em 1690 de que homens — e mulheres — são livres e iguais. Na América, os colonos britânicos estavam fartos de ser tratados como cativos e desiguais. Reunidos na Filadélfia, em 1776, delegados das treze colônias decidiram romper com a Grã-Bretanha.
Escrita por Thomas Jefferson, a Declaração de Independência, publicada em 4 de julho, fala em liberdade, igualdade e felicidade, mas admite escravidão. No entanto, três quartos de seus 56 signatários eram proprietários de escravos. “Se existe algo ridículo, é um patriota americano assinar a Declaração de Independência com uma mão, e, com a outra, brandir um chicote sobre seus escravos”, disse um abolicionista da época. Abigail Adams, mulher do delegado por Massachusetts John Adams, escreveu que “a paixão pela liberdade não é tão forte no peito daqueles que a subtraem de seus semelhantes” — dos doze primeiros presidentes dos EUA, somente dois não seriam proprietários de escravos: seu marido e seu filho John Quincy.
É Jefferson o principal símbolo da contradição americana. Era contra a escravatura, mas teve mais de 600 escravos, e, quando governador da Virginia ou presidente da República, pouco fez para combatê-la. Teve seis filhos com a escrava Sally Hemings, mas não alforriou seus escravos.
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Clique e AssineO ponto mais polêmico no debate da Constituição, em 1789, foi justamente a escravatura, de que o Sul não abria mão. Entre uma União com escravos e união nenhuma, os constituintes optaram pela primeira: o texto final evita menção a escravos, raça ou cor da pele, mas fala de “pessoas livres” e “outras pessoas”. Não foi só pragmatismo: acreditava-se que a escravidão era anacrônica, logo desapareceria.
Outro conflito da época era sobre o papel do governo central. Alexander Hamilton, do Norte, queria um governo forte, e Jefferson, do Sul, defendia a autonomia dos estados, temia que o governo interferisse no “estilo de vida” (escravagista) sulista. Jefferson cederia a Hamilton em troca de que a nova capital ficasse no Sul — uma aceitação tácita da escravidão pelo Norte. O conflito levaria à criação de dois partidos: o Federalista (semente do atual Partido Republicano), com uma visão nortista, urbana, industrial, antiescravagista; e o Democrático-Republicano (atual Partido Democrata), com uma visão sulista, rural, agrária, escravocrata.
“A Declaração de Independência, de 4 de julho de 1776, fala em liberdade, igualdade e felicidade, mas admite escravidão”
Ocorreu o previsto no Norte: a escravidão foi abolida em 1804; no Sul, entretanto, a Revolução Industrial teve efeito inesperado. A invenção do descaroçador de algodão, em 1793, multiplicou enormemente a produtividade, e, como a colheita continuou manual, a demanda por escravos explodiu. Em seis décadas, o número de escravos saltaria de 700 000 para 4 milhões.
A tensão entre o Norte, cada vez mais abolicionista, e o Sul, cada vez mais comprometido com a escravatura, se elevaria, chegando ao ápice com a eleição, em 1860, do republicano Abraham Lincoln, que levou os estados do Sul a abandonar a União, dando início à Guerra Civil.
O objetivo de Lincoln era apenas manter a integridade da União, mas, pressionado por muitas derrotas, decretou, em 1863, a emancipação dos escravos do Sul, estimulando-os a fugir, se alistar no exército da União e combater os antigos senhores.
No Dia da Independência, 4 de julho, Lincoln obteve duas vitórias decisivas, em Gettysburg, no leste, e em Vicksburg, no oeste: o Norte começava, enfim, a derrotar o Sul. Em Gettysburg, Lincoln fez seu discurso mais famoso: “Há 87 anos, nossos antepassados criaram neste continente uma nova nação, concebida na liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais. (…) esta nação, com a graça de Deus, renascerá na liberdade, e o governo do povo, pelo povo e para o povo não desaparecerá da face da Terra.”
Em janeiro de 1865, reeleito, Lincoln aprovou a 13ª emenda à Constituição, abolindo a escravatura em todo o país. Em abril, o Sul capitulou: a Guerra Civil chegava ao fim, tendo matado cerca de 700 000 americanos e libertado 4 milhões de escravos.
Mesmo sem Lincoln, assassinado por um fanático sulista, e com o sucessor, o democrata racista do Tennessee Andrew Johnson, contra, o Congresso aprovou várias leis dando igualdade aos negros. Os racistas do Sul responderam criando organizações que praticavam violência contra negros e brancos republicanos, como a Ku Klux Klan, que governadores e prefeitos sulistas não conseguiam (ou não queriam) combater.
O presidente seguinte, Ulysses Grant (o general que venceu a guerra), aprovou novas leis para combater o racismo e permitiu o uso das Forças Armadas para garantir que elas fossem respeitadas. A Ku Klux Klan desapareceu, e a integração racial seguiu seu curso até a eleição seguinte, em 1876, tão apertada que não se sabia quem era o vencedor. Para superar o impasse, os democratas cederam a vitória em troca da retirada das tropas federais do Sul, o que permitiu que os sulistas criassem leis racistas. A integração cessou.
A legislação racista, conhecida como “Jim Crow”, foi confirmada pela Suprema Corte, que, em 1896, criou a doutrina “separados, porém iguais”, que afirmava que a segregação racial não feria a igualdade de direitos. Banheiros, bebedouros, restaurantes, escolas, hospitais, transportes foram segregados; em 1913, o presidente sulista Woodrow Wilson adotou a segregação em dependências federais.
O “Jim Crow” criava graves dificuldades sociais e econômicas para os negros, e levou milhões deles a migrar para o Norte (acirrando ali o racismo). Para quem ficava, era pior: em 1915, a Ku Klux Klan ressurgiu, e os linchamentos se tornaram frequentes. Billie Holiday gravou um de seus maiores sucessos, Strange Fruit, em 1939:
“As árvores do Sul dão uma fruta estranha / Sangue nas folhas e sangue na raiz / Corpos negros balançando na brisa do Sul / Frutas estranhas penduradas nos álamos”
A entrada dos EUA na II Guerra expôs a contradição: os americanos combatiam o racismo na Europa, mas o praticavam em casa, enquanto os europeus, brancos, tratavam os soldados negros como iguais. A percepção de injustiça se aguçou entre os negros. Também o establishment branco percebeu que o racismo prejudicava a imagem do país. Na Índia, um juiz da Suprema Corte ouviu: “Por que os EUA permitem o linchamento de negros?”.
No início dos anos 1950, o advogado Thurgood Marshall demonstrou que a doutrina “separados, porém iguais” tornava impossível a um negro ter uma educação igual à de um branco, e a Suprema Corte decidiu, por 9 a 0, que a segregação em escolas era inconstitucional.
Quando, em 1955, em um ônibus em Montgomery, Alabama, o motorista lhe ordenou que cedesse seu lugar a um branco, a ativista Rosa Parks disse não. Foi presa. Organizou-se um boicote aos transportes de Montgomery, com o jovem pastor Martin Luther King na liderança. O boicote durou um ano, levou a Suprema Corte a declarar a segregação nos transportes inconstitucional, e pôs King à frente da campanha pelos direitos civis.
A campanha promoveu inúmeros episódios de resistência pacífica ao racismo e chegou ao ápice na “Marcha sobre Washington”, em 1963, quando 250 000 negros e brancos exigiram o fim da segregação. Diante do Memorial de Lincoln, King proferiu seu mais famoso discurso: “Eu tenho o sonho de que um dia esta nação se erga e cumpra o verdadeiro significado de sua crença — acreditamos que estas verdades são autoevidentes: que todos os homens nascem iguais. Eu tenho o sonho de que um dia, na Geórgia, os filhos dos antigos escravos e dos antigos donos de escravos possam se sentar juntos à mesa da fraternidade. (…)”.
Não foi uma jornada tranquila. Eram tempos de intolerância e ódio, e os manifestantes enfrentaram terrível violência. Muitos foram assassinados, incluindo líderes, como John Kennedy, seu irmão Robert, e Martin Luther King. Mas o Congresso acabou por proibir qualquer tipo de discriminação.
O apoio dos presidentes democratas Kennedy e Lyndon Johnson (sulista) aos direitos civis, aliado ao aceno de republicanos reacionários, como Richard Nixon, provocou uma inversão: os racistas migraram para o Partido Republicano, e os negros passaram a votar no Partido Democrata.
O fim da legislação racista permitiu notável progresso econômico e social aos negros, sendo paradigmática a eleição de Barack Obama. Mas a igualdade continua distante: 25% dos negros americanos vivem abaixo da linha de pobreza, o desemprego entre eles é o dobro, a taxa de encarceramento é seis vezes maior.
E a polícia mata, proporcionalmente, o dobro de negros. A cada vez que um policial americano branco mata um negro desarmado, o mundo se horroriza, mas a reação ao cruel assassinato de George Floyd foi especial. Em todo o mundo, em plena pandemia, multidões de brancos e negros foram às ruas. A intolerância racial tornou-se universalmente intolerável.
Há quem não compreenda. Donald Trump conclamou a polícia a agredir seus compatriotas. No Brasil, onde os protestos contra o racismo (mais dissimulado aqui, mas não menos tóxico) se confundem com os protestos contra o governo, Jair Bolsonaro chamou os manifestantes de terroristas. O mundo quer andar para a frente, mas sempre há quem tente levá-lo para o século retrasado.
A questão proposta por Locke há mais de 300 anos, à qual se remeteram Jefferson, Lincoln e King, ressurge a cada vez que morre um George Floyd: quando teremos uma sociedade livre e menos desigual?
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693