Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

As contradições na luta contra o racismo nos Estados Unidos

O paradoxo ecoa no país: 25% dos negros vivem abaixo da linha de pobreza, o desemprego entre eles é o dobro e a taxa de prisão é seis vezes maior

Por Ricardo Rangel Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h10 - Publicado em 26 jun 2020, 06h00

“Acreditamos que estas verdades são autoevidentes: que todos os homens nascem iguais, dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre eles a vida, a liberdade e a busca da felicidade.” (Thomas Jefferson, na Declaração de Independência dos EUA, 1776)

“Não consigo respirar.” (George Floyd, 2020)

No século XVIII, discutiam-se ideias revolucionárias (mais tarde chamadas “liberais”), como a tese proposta por John Locke em 1690 de que homens — e mulheres — são livres e iguais. Na América, os colonos britânicos estavam fartos de ser tratados como cativos e desiguais. Reunidos na Filadélfia, em 1776, delegados das treze colônias decidiram romper com a Grã-Bretanha.

Escrita por Thomas Jefferson, a Declaração de Independência, publicada em 4 de julho, fala em liberdade, igualdade e felicidade, mas admite escravidão. No entanto, três quartos de seus 56 signatários eram proprietários de escravos. “Se existe algo ridículo, é um patriota americano assinar a Declaração de Independência com uma mão, e, com a outra, brandir um chicote sobre seus escravos”, disse um abolicionista da época. Abigail Adams, mulher do delegado por Massachusetts John Adams, escreveu que “a paixão pela liberdade não é tão forte no peito daqueles que a subtraem de seus semelhantes” — dos doze primeiros presidentes dos EUA, somente dois não seriam proprietários de escravos: seu marido e seu filho John Quincy.

É Jefferson o principal símbolo da contradição americana. Era contra a escravatura, mas teve mais de 600 escravos, e, quando governador da Virginia ou presidente da República, pouco fez para combatê-la. Teve seis filhos com a escrava Sally Hemings, mas não alforriou seus escravos.

ASSINE VEJA

Wassef: ‘Fiz para proteger o presidente’
Wassef: ‘Fiz para proteger o presidente’ Leia nesta edição: entrevista exclusiva com o advogado que escondeu Fabrício Queiroz, a estabilização no número de mortes por Covid-19 no Brasil e os novos caminhos para a educação ()
Clique e Assine

O ponto mais polêmico no debate da Constituição, em 1789, foi justamente a escravatura, de que o Sul não abria mão. Entre uma União com escravos e união nenhuma, os constituintes optaram pela primeira: o texto final evita menção a escravos, raça ou cor da pele, mas fala de “pessoas livres” e “outras pessoas”. Não foi só pragmatismo: acreditava-se que a escravidão era anacrônica, logo desapareceria.

Continua após a publicidade

Outro conflito da época era sobre o papel do governo central. Alexander Hamilton, do Norte, queria um governo forte, e Jefferson, do Sul, defendia a autonomia dos estados, temia que o governo interferisse no “estilo de vida” (escravagista) sulista. Jefferson cederia a Hamilton em troca de que a nova capital ficasse no Sul — uma aceitação tácita da escravidão pelo Norte. O conflito levaria à criação de dois partidos: o Federalista (semente do atual Partido Republicano), com uma visão nortista, urbana, industrial, antiescravagista; e o Democrático-Republicano (atual Partido Democrata), com uma visão sulista, rural, agrária, escravocrata.

“A Declaração de Independência, de 4 de julho de 1776, fala em liberdade, igualdade e felicidade, mas admite escravidão”

Ocorreu o previsto no Norte: a escravidão foi abolida em 1804; no Sul, entretanto, a Revolução Industrial teve efeito inesperado. A invenção do descaroçador de algodão, em 1793, multiplicou enormemente a produtividade, e, como a colheita continuou manual, a demanda por escravos explodiu. Em seis décadas, o número de escravos saltaria de 700 000 para 4 milhões.

A tensão entre o Norte, cada vez mais abolicionista, e o Sul, cada vez mais comprometido com a escravatura, se elevaria, chegando ao ápice com a eleição, em 1860, do republicano Abraham Lincoln, que levou os estados do Sul a abandonar a União, dando início à Guerra Civil.

O objetivo de Lincoln era apenas manter a integridade da União, mas, pressionado por muitas derrotas, decretou, em 1863, a emancipação dos escravos do Sul, estimulando-os a fugir, se alistar no exército da União e combater os antigos senhores.

Continua após a publicidade

No Dia da Independência, 4 de julho, Lincoln obteve duas vitórias decisivas, em Gettysburg, no leste, e em Vicksburg, no oeste: o Norte começava, enfim, a derrotar o Sul. Em Gettysburg, Lincoln fez seu discurso mais famoso: “Há 87 anos, nossos antepassados criaram neste continente uma nova nação, concebida na liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais. (…) esta nação, com a graça de Deus, renascerá na liberdade, e o governo do povo, pelo povo e para o povo não desaparecerá da face da Terra.”

Em janeiro de 1865, reeleito, Lincoln aprovou a 13ª emenda à Constituição, abolindo a escravatura em todo o país. Em abril, o Sul capitulou: a Guerra Civil chegava ao fim, tendo matado cerca de 700 000 americanos e libertado 4 milhões de escravos.

Martin Luther King, Jr.
UM SONHO - Martin Luther King, em 1963: um ideal de igualdade (Francis Miller/The LIFE Picture Collection/Getty Images)

Mesmo sem Lincoln, assassinado por um fanático sulista, e com o sucessor, o democrata racista do Tennessee Andrew Johnson, contra, o Congresso aprovou várias leis dando igualdade aos negros. Os racistas do Sul responderam criando organizações que praticavam violência contra negros e brancos republicanos, como a Ku Klux Klan, que governadores e prefeitos sulistas não conseguiam (ou não queriam) combater.

O presidente seguinte, Ulysses Grant (o general que venceu a guerra), aprovou novas leis para combater o racismo e permitiu o uso das Forças Armadas para garantir que elas fossem respeitadas. A Ku Klux Klan desapareceu, e a integração racial seguiu seu curso até a eleição seguinte, em 1876, tão apertada que não se sabia quem era o vencedor. Para superar o impasse, os democratas cederam a vitória em troca da retirada das tropas federais do Sul, o que permitiu que os sulistas criassem leis racistas. A integração cessou.

A legislação racista, conhecida como “Jim Crow”, foi confirmada pela Suprema Corte, que, em 1896, criou a doutrina “separados, porém iguais”, que afirmava que a segregação racial não feria a igualdade de direitos. Banheiros, bebedouros, restaurantes, escolas, hospitais, transportes foram segregados; em 1913, o presidente sulista Woodrow Wilson adotou a segregação em dependências federais.

Continua após a publicidade

O “Jim Crow” criava graves dificuldades sociais e econômicas para os negros, e levou milhões deles a migrar para o Norte (acirrando ali o racismo). Para quem ficava, era pior: em 1915, a Ku Klux Klan ressurgiu, e os linchamentos se tornaram frequentes. Billie Holiday gravou um de seus maiores sucessos, Strange Fruit, em 1939:

Thomas Jefferson (1743-1826) Third President of the United States 1801-1809. Coloured lithograph half-length portrait of Jefferson seated at desk, c1845.
DOIS PESOS - Jefferson: era contra a escravatura, mas tinha escravos (Universal History Archive/Getty Images)

“As árvores do Sul dão uma fruta estranha / Sangue nas folhas e sangue na raiz / Corpos negros balançando na brisa do Sul / Frutas estranhas penduradas nos álamos”

A entrada dos EUA na II Guerra expôs a contradição: os americanos combatiam o racismo na Europa, mas o praticavam em casa, enquanto os europeus, brancos, tratavam os soldados negros como iguais. A percepção de injustiça se aguçou entre os negros. Também o establishment branco percebeu que o racismo prejudicava a imagem do país. Na Índia, um juiz da Suprema Corte ouviu: “Por que os EUA permitem o linchamento de negros?”.

No início dos anos 1950, o advogado Thurgood Marshall demonstrou que a doutrina “separados, porém iguais” tornava impossível a um negro ter uma educação igual à de um branco, e a Suprema Corte decidiu, por 9 a 0, que a segregação em escolas era inconstitucional.

Quando, em 1955, em um ônibus em Montgomery, Alabama, o motorista lhe ordenou que cedesse seu lugar a um branco, a ativista Rosa Parks disse não. Foi presa. Organizou-se um boicote aos transportes de Montgomery, com o jovem pastor Martin Luther King na liderança. O boicote durou um ano, levou a Suprema Corte a declarar a segregação nos transportes inconstitucional, e pôs King à frente da campanha pelos direitos civis.

Continua após a publicidade

A campanha promoveu inúmeros episódios de resistência pacífica ao racismo e chegou ao ápice na “Marcha sobre Washington”, em 1963, quando 250 000 negros e brancos exigiram o fim da segregação. Diante do Memorial de Lincoln, King proferiu seu mais famoso discurso: “Eu tenho o sonho de que um dia esta nação se erga e cumpra o verdadeiro significado de sua crença — acreditamos que estas verdades são autoevidentes: que todos os homens nascem iguais. Eu tenho o sonho de que um dia, na Geórgia, os filhos dos antigos escravos e dos antigos donos de escravos possam se sentar juntos à mesa da fraternidade. (…)”.

Lady In Satin
STRANGE FRUIT - Billie Holiday: “As árvores do Sul dão uma fruta estranha” (Michael Ochs Archives/Getty Images)

Não foi uma jornada tranquila. Eram tempos de intolerância e ódio, e os manifestantes enfrentaram terrível violência. Muitos foram assassinados, incluindo líderes, como John Kennedy, seu irmão Robert, e Martin Luther King. Mas o Congresso acabou por proibir qualquer tipo de discriminação.

O apoio dos presidentes democratas Kennedy e Lyndon Johnson (sulista) aos direitos civis, aliado ao aceno de republicanos reacionários, como Richard Nixon, provocou uma inversão: os racistas migraram para o Partido Republicano, e os negros passaram a votar no Partido Democrata.

O fim da legislação racista permitiu notável progresso econômico e social aos negros, sendo paradigmática a eleição de Barack Obama. Mas a igualdade continua distante: 25% dos negros americanos vivem abaixo da linha de pobreza, o desemprego entre eles é o dobro, a taxa de encarceramento é seis vezes maior.

E a polícia mata, proporcionalmente, o dobro de negros. A cada vez que um policial americano branco mata um negro desarmado, o mundo se horroriza, mas a reação ao cruel assassinato de George Floyd foi especial. Em todo o mundo, em plena pandemia, multidões de brancos e negros foram às ruas. A intolerância racial tornou-se universalmente intolerável.

Continua após a publicidade

Há quem não compreenda. Donald Trump conclamou a polícia a agredir seus compatriotas. No Brasil, onde os protestos contra o racismo (mais dissimulado aqui, mas não menos tóxico) se confundem com os protestos contra o governo, Jair Bolsonaro chamou os manifestantes de terroristas. O mundo quer andar para a frente, mas sempre há quem tente levá-lo para o século retrasado.

A questão proposta por Locke há mais de 300 anos, à qual se remeteram Jefferson, Lincoln e King, ressurge a cada vez que morre um George Floyd: quando teremos uma sociedade livre e menos desigual?

Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.