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A igreja tem salvação?

Com a inédita expulsão de um cardeal acusado de estuprar um adolescente e debate em torno de crimes sexuais de religiosos, Vaticano tenta limpar sua imagem

Por Filipe Vilicic Atualizado em 30 jul 2020, 19h54 - Publicado em 22 fev 2019, 07h00

O sexo — o sexo proibido, o sexo consensual, o sexo criminoso, seja qual for a forma — está no alto das preocupações do lugar que o Ocidente aprendeu a considerar um santuário de pureza — a sede da Igreja Católica, em Roma. Na quinta-feira 21, o papa Francisco abriu um evento inédito em mais de 2 000 anos de história do cristianismo, destinado a discutir um dos aspectos mais trágicos do sexo — o abuso sexual contra menores cometido por membros do clero. Para o encontro, denominado “A proteção de menores na Igreja”, o pontífice convocou 114 presidentes de conferências episcopais, como a CNBB, cardeais e embaixadores. Em uma atitude ainda mais ousada, Francisco estendeu o convite a vítimas de padres, na esperança de que seus depoimentos sensibilizem o clero para que ações de combate àquelas práticas alcancem, de modo muito contundente, as dioceses.

Naturalmente, ninguém espera que um encontro episcopal de apenas quatro dias resulte, a curto prazo, em qualquer grande novidade — mas ele é, sem dúvida, um primeiro e significativo passo para atacar a chaga do abuso sexual de menores praticado por integrantes da Igreja. Aliás, ao dar início aos trabalhos da reunião, o papa Francisco foi categórico. “Escutemos o grito das crianças que pedem justiça”, disse ele. “O povo de Deus olha para nós e espera não simples e óbvias condenações, e sim medidas concretas e eficazes”, enfatizou.

Adormecido por décadas a fio, o crime de pedofilia começou a ser iluminado nos Estados Unidos em 1985, quando, em meio a uma avalanche de denúncias, um padre que servia em uma pequena comunidade rural do Estado de Louisiana admitiu ter abusado de 37 garotos — e pegou vinte anos de cadeia. Contudo, foi em 2002 que o tema ganhou uma dimensão extraordinária, quando, a partir de uma investigação do jornal The Boston Globe, veio à tona o escândalo do acobertamento, pela hierarquia da Igreja local, dos crimes de abuso sexual de dezenas de padres da cidade. As reportagens renderam ao Globe o principal prêmio da imprensa americana, o Pulitzer, e a história chegou aos cinemas com o filme Spotlight, vencedor do Oscar de 2016.

PUNIÇÃO - Theodore McCarrick, ex-arcebispo de Washington: banido (Gregory A. Shemitz/Reuters)

No Brasil, histórias de padres pedófilos passaram a ser denunciadas com regularidade sob o papado de Bento XVI. Há relatos de casos nos estados do Rio de Janeiro, Alagoas, Paraná e São Paulo, por exemplo. Na última semana, ao menos quatro ex-coroinhas — ainda sob anonimato — denunciaram o padre Pedro Leandro Ricardo, reitor da Basílica de Santo Antônio, de Americana, no interior de São Paulo, pelo assédio que teriam sofrido quando eram adolescentes e o auxiliavam nas missas em Araras, também no interior paulista. O sacerdote já havia sido afastado da função eclesiástica em janeiro por outras cinco denúncias de ex-coroinhas. O Ministério Público começou a examinar os casos também de dom Vilson Dias de Oliveira, bispo da Diocese de Limeira, em São Paulo, suspeito de acobertar os crimes — além de desviar verbas da Igreja. Paralelamente, o Vaticano determinou uma investigação, que ficou a cargo do bispo João Inácio Muller, de Lorena, igualmente no interior de São Paulo. Até agora, porém, nenhum membro do alto clero brasileiro foi punido por ter cometido ou acobertado abusos sexuais praticados por integrantes da Igreja. As penalidades, quando ocorreram no país, se limitaram a representantes do baixo clero. Um exemplo: na quarta-­feira 20, o Vaticano expulsou o padre goiano Jean Roger Rodrigo de Souza, acusado de abusar de ao menos onze ex-freiras e ex-noviças.

Considerando punições em alto escalão, o papa Francisco fez história uma semana antes de ser aberto o encontro sobre proteção de menores na Igreja. No sábado 16, ele expulsou do clero Theodore McCarrick, de 88 anos, agora ex-cardeal e ex-arcebispo de Washington (EUA), acusado de abusar sexualmente de adolescentes na década de 80, “com a circunstância agravante do abuso de poder”, segundo a Cúria. Até então, jamais um cardeal havia sido banido da Igreja por ter cometido crime sexual. Apesar disso, McCarrick, que costumava exigir favores sexuais de padres que procuravam seu apoio para subir na hierarquia católica, não sofrerá nenhuma punição judicial, pois seu crime, de acordo com as leis americanas, já está prescrito.

Extra Ecclesiam nulla salus (Fora da Igreja não há salvação), diz a máxima de São Cipriano, teólogo latino e bispo, que viveu no século III. Mas e a Igreja, ela tem salvação? Disse a VEJA o escritor americano Robert Hutchinson, especialista em catolicismo, autor de When in Rome: A Journal of Life in Vatican City (Quando em Roma: o Diário da Vida na Cidade do Vaticano): “Francisco é diferente de seus antecessores. Papas anteriores pensavam que poderiam enfrentar a questão do abuso sexual com a mais vaticanista de todas as virtudes, a discrição. No fim, acabaram somente acobertando o assunto”.

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As reações contra as últimas atitudes do papa Francisco começaram antes mesmo de o evento episcopal de proteção a menores na Igreja ser aberto — e vieram, como era de esperar, das alas mais conservadoras do Vaticano. Na véspera do encontro, os cardeais Raymond Burke, dos Estados Unidos, e Walter Brandmüller, da Alemanha, divulgaram uma carta em que criticam abertamente o sumo pontífice, de quem são notórios opositores. “O mundo católico está à deriva”, acusam no texto. “Diante da deriva, parece que a dificuldade se reduz à do abuso de menores, um crime horrível, especialmente quando é perpetrado por um sacerdote, que é, no entanto, só uma parte de uma crise muito maior. A praga da agenda homossexual difundiu-se dentro da Igreja”, escreveram eles. Os cardeais confundem homossexualidade, que é pecado aos olhos de uma parcela da Igreja mas não é delito algum, com os hediondos crimes de abuso sexual contra menores. Confundem o pecaminoso com o criminoso.

Nesse campo, o Vaticano também anda sob os holofotes. Lançado no mesmo dia da abertura do encontro em Roma, o livro No Armário do Vaticano, do jornalista francês Frédéric Martel, expõe a república gay no Vaticano, fazendo a devida distinção entre homossexuais, que vivem uma vida dupla, e predadores sexuais. Martel, cuja obra está saindo em vinte países e oito idiomas, incluindo o português (por ora apenas em Portugal), sustenta que uma “guerra entre gays” estaria por trás das “motivações secretas” que levaram à renúncia de Bento XVI, em 2013, e, agora, resultaram em rebelião aberta contra o papa Francisco (veja a entrevista com o autor abaixo).

O argentino Jorge Mario Bergoglio assumiu o trono de Pedro com a incumbência de recompor a imagem do catolicismo, pois a confiança dos fiéis na Igreja em países como o Chile, duramente traumatizado por escândalos sexuais envolvendo religiosos, caiu de patamar superior a 50% para até 20%. A missão do pontífice é árdua e complexa, a começar pela dificuldade de resgatar a credibilidade da Igreja junto a quem sofreu com os abusos do clero. Contudo, os esforços do papa estão apenas em sua fase inicial. “Não espero que muita coisa mude com a reunião sobre proteção de menores”, declarou a VEJA a americana Judy Klapperich-­Larson, de 71 anos, estuprada por um sacerdote seis décadas atrás. Vice-presidente da Survivors Network of Those Abused by Priests (Rede de Sobreviventes Daqueles Abusados por Padres), organização criada em 1988 nos EUA, ela continua cética quanto às intenções do pontífice: “Francisco é um showman. Ao mesmo tempo que já beijou a mão de um sobrevivente que conheço e se desculpou pelo grande pecado do clero, certa vez também acusou vítimas de mentir. A verdade é que ele só age quando a crise se torna pública”. Não há dúvida de que está agindo.

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Com reportagem de Sabrina Brito


A ‘‘guerra das rainhas’’

O jornalista francês Frédéric Martel lançou seu mais recente livro, No Armário do Vaticano (o título da edição francesa é ainda mais provocador: Sodoma), no mesmo dia em que o Vaticano abriu o encontro “Proteção de menores na Igreja”. Fruto de quatro anos de trabalho, com apoio de oitenta pesquisadores, a obra trata de homossexualidade no clero e de abusos sexuais acobertados pelo Vaticano desde Paulo VI (1963-1978). Martel, referência da comunidade LGBT e gay, falou a VEJA por telefone.

O senhor informa que algo como três em cada quatro membros do clero no Vaticano são homossexuais. No México, também seriam 75%. Como chegou a conclusões tão categóricas? Essas estimativas foram feitas por bispos e cardeais, não por mim. O que posso afirmar é que a maioria é homos­sexual. Trabalhei também com levantamentos oficiais. No México, uma das fontes foi o Ministério do Interior. Minha constatação: com certeza absoluta, das vinte maiores autoridades do Vaticano, ao menos doze são gays. Sei disso porque entrevistei os sacerdotes (alguns admitiram tal condição), por haver conversado com parceiros sexuais deles e ter provas irrefutáveis. Quero, porém, deixar claro que a meta não foi expor a homossexualidade deles.

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Qual foi a meta? Revelar a hipocrisia na Igreja. Entrevistei 1 500 pessoas, em trinta países, entre elas 41 cardeais, 52 bispos e 45 núncios. Concluí que, quanto mais um membro do clero é homofóbico, maior a chance de que seja gay praticante.

Por quê? É preciso entender que no caso da Igreja não se trata apenas de uma teocracia, mas de uma gerontocracia. Os cardeais têm seus 75 anos. Eles descobriram a própria se­xua­lidade nos anos 40 e 50. Cresceram em um mundo onde era errado, ou até criminoso, ser gay. Pela proibição, homossexuais levavam vida dupla — lógica que foi inserida na Igreja. O Vaticano não vive em 2018, e sim como se estivesse em 1950.

Como esses homossexuais se tornaram homofóbicos? Antes de tudo, pede-se contextualização. Não há ligação direta entre homossexualidade e abuso sexual, ao contrário do que a ala conservadora da Igreja tenta provar, justamente para preservar os próprios segredos e comprometer o papa Francisco. No mundo leigo, a maior parcela dos agressores são homens heterossexuais que atacam mulheres jovens. Na Igreja, como a maioria é formada por homossexuais, os ataques acabam sendo contra meninos. Cerca de 80% das vítimas são garotos, em boa parte menores de idade. Os padres vivem vida dupla, de hipocrisia, em uma cultura de segredos. Foi na década de 60, com o início da liberação sexual no mundo, que o Vaticano se desalinhou da sociedade. Gays começaram a ganhar voz.

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Qual o impacto da mudança social no Vaticano? Ela tirou do armário a homossexualidade na Igreja. Como reagiram Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI? Protegeram os padres. Inflaram o discurso homofóbico e defenderam os predadores que se apoiam nessa cultura de segredos para cometer abusos. Os padres criminosos nunca foram denunciados. Pelo contrário, eram resguardados. Quem os defendia receava ter sua sexualidade exposta. Há muita chantagem no Vaticano.

O papa Francisco veio para mudar? Não acredito em Deus e, como escritor, espero mostrar a verdade, sem me preocupar com a recuperação da imagem da Igreja. Contudo, gosto da postura do papa. De início, desconfiava. Em determinado momento, ele parecia apoiar os gays. Noutro, condenava-os. Entretanto, depois de muito apurar, descobri que Francisco faz isso porque há um complô no Vaticano — uma “guerra de rainhas”, pois é, em essência, entre homossexuais — que tenta derrubá-lo. Os conservadores atacam o papa por ele ser progressista.

Há ações concretas de Francisco para modernizar a Igre­ja? Ele já começou a denunciar a hipocrisia e o excesso de rigidez de cardeais que levam vida dupla. Ago­ra, com o encontro de proteção de menores e a expulsão do ex-­car­deal Theodore McCarrick, mostra que quer deixar o clero mais honesto e transparente. É um passo corajoso, embora possa ser tido como tardio.

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Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623

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