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A disputa entre a França e a Itália pelo pico do Mont Blanc

A França cria uma grande reserva ambiental nas vizinhanças do ponto mais alto dos Alpes e fere os brios da Itália, que também se diz dona do pedaço

Por Caio Saad Atualizado em 13 nov 2020, 09h49 - Publicado em 13 nov 2020, 06h00

No maciço nevado de Mont Blanc, que culmina no pico mais alto dos Alpes, a plácida alvura das pistas de esqui e a vista deslumbrante das trilhas pedregosas disfarçam um imbróglio diplomático que se arrasta há séculos: em que ponto, exatamente, passa a linha que separa a França da Itália, coproprietária das encostas do, neste caso, Monte Bianco. A disputa ganhou combustível quando o presidente Emmanuel Macron viajou especialmente a Chamonix, a principal cidade do lado francês, para anunciar a criação de uma zona de proteção ambiental que abrange um naco significativo da montanha. A Itália decidiu examinar com lupa as marcações e observou que a reserva, segundo ela, invade o seu lado. Com a honra nacional em jogo, o ministro das Relações Exteriores, Luigi Di Maio, anunciou há poucas semanas haver encaminhado uma queixa formal ao governo de Paris, via embaixada, manifestando “profunda decepção” com a “intervenção” indevida em território italiano. Não houve, até agora, resposta da parte francesa.

A área em questão envolve a Geleira do Gigante, logo abaixo do Refúgio Torino, um famoso hotel de propriedade do Clube Alpino Italiano frequentado por esquiadores e apreciadores de trilhas montanhosas e acessado pelo teleférico que liga Courmayeur, que, apesar do nome, é a principal cidade do italiano Valle D’Aosta, à francesa Chamonix. O mesmo teleférico, por sinal, já havia propiciado um momento de tensão em 2015, quando a parte italiana foi inaugurada. Na ocasião, o então primeiro-ministro da Itália, Matteo Renzi, elogiou a obra construída por 500 trabalhadores a temperaturas de até 30 graus negativos — “a oitava maravilha do mundo” — e aproveitou para alfinetar o país vizinho: “Não, não estamos invadindo a França”. As duas localidades são unidas não só pelo ar como também por baixo da terra, por um túnel de 11 quilômetros que se tornou uma das mais importantes vias do transporte transalpino.

O alerta de que a reserva ambiental francesa engole uma faixa que pertenceria à porção italiana da geleira partiu da deputada Giorgia Meloni, líder do partido ultradireitista Irmãos da Itália. “Trata-se de uma invasão inaceitável do Monte Bianco. Não podemos tolerar esse ataque francês”, exagerou Giorgia, para quem o projeto — que inclui medidas de preservação da fauna e flora, exigência de equipamentos rigorosos de segurança para os 30 000 visitantes anuais e proibição de voos de parapente — tem o propósito de asfixiar o turismo na porção italiana. O ex-vice-primeiro-ministro Matteo Salvini, figura mais expressiva do populismo nacionalista, meteu sua colher exigindo “respeito às fronteiras nacionais”. O chanceler Di Maio, outro luminar da onda direitista italiana que, no início do ano passado, posou em Paris ao lado dos “coletes amarelos” (a turma que durante meses mobilizou protestos contra Macron), não perdeu a chance de pôr lenha na fogueira encaminhando a carta de protesto formal.

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A história das disputas territoriais no Mont Blanc (a denominação, aqui, não indica favoritismos — esse é simplesmente o nome mais conhecido da montanha) é complexa, com um pé no surreal: há registros de ocasiões em que equipes de resgate dos dois lados bateram boca sobre quem iria atender turistas em dificuldades em algum pedaço de propriedade duvidosa. As polêmicas se concentram em dois pontos de passagem da linha divisória entre França e Itália: um em torno do Mont Blanc propriamente dito e o outro em volta do segundo pico mais alto, o Monte Bianco de Courmayeur (veja no mapa). A Itália cita um acordo de 1860 para alegar que é dona de uma parte de ambos os cumes. Os franceses, por sua vez, invocam um tratado de 1796 para dizer que os dois estão inteiramente dentro da França e a fronteira passa ao largo deles.

O primeiro mapa detalhado da região, desenhado em 1865 e aceito pela maioria dos especialistas internacionais, põe o ponto máximo dos Alpes em território francês, mas divide ao meio o topo do Monte Bianco de Courmayeur. Esse mapa foi reconhecido pelos dois governos da época, mas permanece contestado pelas hostes mais patrióticas até hoje. “Os protestos do lado italiano vêm de políticos acostumados a intensificar ou cultivar argumentos nacionalistas por razões eleitorais”, critica Bernard Debarbieux, professor do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da Universidade de Genebra, na Suíça — o terceiro país a compartilhar os Alpes na região. Pelo sim, pelo não, o Google Maps, que dispõe dos recursos tecnológicos mais avançados para riscar a configuração geográfica do planeta, optou por tracejar uma imprecisa linha pontilhada que deixa um ponto de interrogação sobre o que é França e o que é Itália no ponto mais elevado dos Alpes.

Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713

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