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A crise é outra

A rebeldia populista contra a democracia liberal tem a ver com a economia ou a imigração, mas o cerne do problema está no desmonte do “regime da verdade”

Por William Davies*
Atualizado em 21 dez 2018, 07h01 - Publicado em 21 dez 2018, 07h00

Há centenas de anos as sociedades modernas dependem de algo tão onipresente, tão comum, que mal o percebemos: a confiança. O fato de que milhões de pessoas são capazes de acreditar nas mesmas coisas sobre a realidade é algo incrível, porém mais frágil do que se pensa. Numa época em que as instituições públicas — incluindo mídia, governos e profissões — gozam de confiança geral, raramente questionamos como elas a conseguem. E, no entanto, por trás das democracias liberais bem-sucedidas está uma notável demonstração coletiva de fé: quando autoridades públicas, repórteres, especialistas e políticos compartilham qualquer informação, presume-se que essas pessoas o façam de maneira honesta. O cerne da democracia liberal está na noção de que um pequeno grupo de pessoas — os políticos — pode representar milhões de pessoas. E nada faz com que os eleitores se voltem mais rapidamente contra a democracia liberal do que a corrupção: a suspeita, válida ou não, de que políticos exploram o poder em benefício próprio.

Isso não tem a ver apenas com a política. Na verdade, muito daquilo que acreditamos ser verdade sobre o mundo é, na realidade, algo que aceitamos com base em confiança, por meio de jornais, especialistas e autoridades. Para acreditar que a economia cresceu 1% ou para descobrir sobre os últimos avanços da medicina, reconhecemos várias coisas com base na confiança; não duvidamos automaticamente do caráter moral dos pesquisadores ou repórteres envolvidos. Imagine como tomamos conhecimento dos fatos sobre mudanças climáticas: os cientistas cuidadosamente coletam e analisam dados antes de redigir um artigo que passará por análise anônima de outros cientistas, presumindo que os dados sejam reais. Se publicadas, as descobertas são compartilhadas com jornalistas em comunicados de imprensa, redigidos por órgãos de imprensa das universidades. Esperamos que essas descobertas sejam então relatadas de forma honesta e sem distorções.

“Por trás das democracias liberais bem-sucedidas, há uma demonstração coletiva de fé. E nada faz com que os eleitores neguem mais o liberalismo do que a corrupção”

De volta a meados do século XVII, os órgãos encarregados de lidar com o conhecimento público sempre privilegiaram homens brancos formados que vivem em metrópoles cosmopolitas e cidades universitárias. Isso não desacredita o conhecimento produzido por eles — porém, as coisas se complicam quando essa homogeneidade começa a ter uma identidade política, com os mesmos objetivos políticos. É isso que está implícito no conceito de “elites”: domínios do poder supostamente diferentes — mídia, empresas, política, direito, academia — estão agindo em uníssono.

A tendência de queda na confiança vem ocorrendo em todo o mundo ocidental há vários anos, até mesmo décadas, conforme demonstrado por um grande número de pesquisas. A confiança, e a falta dela, virou preocupação para os formuladores de políticas e empresários desde os anos 90 e início dos anos 2000. Eles temiam que uma redução na confiança levasse a taxas mais altas de criminalidade e comunidades menos coesas, onerando o Estado. O que ninguém previu foi que, quando a confiança cai abaixo de determinado nível, muitos podem encarar todo o espetáculo da política e da vida pública como uma farsa. Isso não acontece porque a confiança em geral cai, e sim porque figuras públicas importantes são consideradas pouco confiáveis. E esses são os indivíduos especificamente encarregados de representar a sociedade.

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Para entender a crise enfrentada pela democracia liberal hoje — independentemente de a identificarmos como “populismo” ou “pós-verdade” —, não basta simplesmente lamentar o crescente ceticismo da população. É preciso também considerar algumas das razões para a retração da confiança. O problema atualmente é que, em várias áreas importantes da vida pública, as intuições básicas dos populistas têm sido repetidamente observadas. Um dos principais responsáveis por isso foi a disseminação da tecnologia digital, criando vastas trilhas de dados com o potencial de contradizer declarações públicas e até mesmo minar instituições públicas inteiras. Considerando-se que é impossível provar de modo conclusivo que um político seja moralmente inocente ou que uma reportagem não tenha sido distorcida, é muito mais fácil demonstrar o contrário. Escândalos, vazamentos, denúncias e revelações de fraude servem para confirmar nossas piores suspeitas. Se, por um lado, a confiança depende de um salto de fé, a desconfiança é apoiada por volumes crescentes de evidências.

Questionados sobre a ascensão de partidos e líderes populistas, alguns comentaristas descreveram a crise enfrentada pelo liberalismo basicamente em termos econômicos — como uma revolta daqueles “desfavorecidos” pela desigualdade e pela globalização. Outro grupo vê isso, principalmente, como a expressão de ansiedades culturais em torno de identidade e imigração. Os dois lados têm alguma razão, é claro, mas nenhum chega ao que está por trás da crise de confiança que os populistas exploram de forma tão implacável. A principal razão de a democracia liberal estar em perigo hoje é que a honestidade de políticos tradicionais, jornalistas e altos executivos deixou de ser inquestionável.

Populistas concentram seus ataques nos vários centros de poder, como partidos políticos, a mídia tradicional, grandes empresas e instituições do Estado, como a Justiça. O que as diversas profissões e autoridades têm em comum é que elas operam usando palavras e símbolos. Ao juntar jornalistas, juízes, especialistas e políticos em um mesmo balaio, como se fosse uma “elite” homogênea, é possível tratá-­los como se estivessem balbuciando jargões, correção política e, enfim, mentiras. Seu status é destruído quando a pretensão de falar honestamente é posta em xeque. Uma forma de causar essa destruição é trazer a público opiniões e gostos particulares dos interlocutores, algo facilitado pelas mídias sociais. Tensões e contradições entre a imagem pública de, digamos, um repórter da BBC e suas opiniões e crenças são muito mais acessíveis na era do Twitter.

“A principal razão de o liberalismo estar em perigo é que a honestidade de políticos tradicionais, jornalistas e executivos deixou de ser inquestionável”

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O que surge hoje é o que o teórico social Michel Foucault (1926-1984) teria chamado de um novo “regime de verdade” — uma maneira diferente de organizar as informações e a confiança na sociedade. O surgimento de especialistas e administradores governamentais no século XVII criou a plataforma para uma solução liberal distinta para esse problema, que se baseava no pressuposto de que o conhecimento residiria em registros públicos, jornais, arquivos governamentais e periódicos. Entretanto, quando a integridade dessas pessoas e instrumentos é posta em dúvida, logo surgem uma nova classe de figuras políticas e novas tecnologias para ocupar o espaço da confiança perdida. Assim, o projeto lançado há mais de três séculos, de confiar em indivíduos da elite para relatar e julgar as coisas em nosso nome, pode não ser viável a longo prazo, pelo menos não em sua atual forma. É tentador satisfazer a fantasia de que podemos reverter as forças que minaram as elites, fazendo-­as recuar usando um arsenal ainda maior de fatos. Mas isso significa ignorar os motivos mais básicos por trás da mudança na natureza da confiança.

A principal característica desse novo regime é que agora se supõe que a verdade resida em arquivos ocultos de dados, e não em fatos publicamente disponíveis. É o que confirmam escândalos como o vazamento dos registros da Guerra do Iraque e, mais recentemente, o movimento #MeToo, que também decorreu de uma súbita e volumosa série de revelações, gerando uma crise de confiança. A verdade sempre esteve lá, só que não era de conhecimento público. Na era do e-mail, das mídias sociais e das câmeras dos telefones, é senso comum supor que toda a atividade social gera dados brutos, que estão por aí, em algum lugar. A verdade se torna a lava sob a crosta terrestre, que de tempos em tempos acaba explodindo na forma de um vulcão.

Um novo tipo de contador da verdade surgiu juntamente com essas tendências. É o indivíduo que parece corajoso o suficiente para duvidar das instituições — sejam agências governamentais, sejam jornais, empresas, partidos políticos. Alguns são denunciantes, outros são líderes políticos e outros são teóricos da conspiração ou trolls. O problema é que todo mundo tem o próprio contador da verdade heroico, porque estamos todos preocupados com diferentes mentiras. Se um mundo onde todos têm os próprios contadores da verdade se assemelha ao relativismo, é porque o é. Mas as raízes desse novo e muitas vezes inquietante “regime de verdade” não estão apenas na ascensão do populismo ou na era do big data. As elites não conseguiram entender que a crise tem mais a ver com confiança do que com fatos.

* William Davies é sociólogo e economista político da Goldsmiths, Universidade de Londres. Seu livro mais recente é Nervous States: How Feeling Took Over the World (Estados Nervosos: Como as Emoções Dominaram o Mundo)

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Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614

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