Os estrondos da guerra entre Rússia e Ucrânia, a primeira a confrontar dois países da Europa em quase oitenta anos, continuam a se fazer ouvir. Ao completar dois meses da brutal e injustificável invasão do país vizinho, tropas russas se aglomeravam na faixa de fronteira e bombas despencavam sobre cidades ucranianas, o que ambos os lados descrevem como o início de uma nova — e, provavelmente, mais devastadora — fase de combates. Nessa ofensiva, o comando militar russo está mostrando que aprendeu com os erros da primeira investida, a impressionante resistência ucraniana parece exausta, o castigado porto de Mariupol está prestes a se render e os apelos do governo de Kiev por armas e ajuda carregam um tom de desespero. Em meio aos escombros, uma relíquia da Guerra Fria que se julgava obsoleta e decadente ganha nova relevância: a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) voltou a ser vista como refúgio dos países que se sentem ameaçados pela sanha expansionista de Vladimir Putin.
Chegando a trinta membros desde 1997, a Otan agora é alvo do interesse da Finlândia e da Suécia, que nunca lhe deram a menor bola. Bastiões da neutralidade e da independência militar — em parte por opção e, em parte, para agradar à vizinha Rússia —, os dois países estudam a possibilidade de ingressar na aliança ocidental. A primeira-ministra finlandesa Sanna Marin justificou a mudança de posição citando a necessidade de o país “estar preparado para todo tipo de ação por parte da Rússia” e vendo sua melhor chance na “defesa comum garantida pelo Artigo 5” da Otan, que estipula que qualquer ataque a um país-membro é uma agressão a todos. Em dezembro, o apoio dos finlandeses à participação na aliança era de 24%. Quatro meses depois, subiu para 68%, incluindo mais da metade dos 200 parlamentares. “Até agora, a opção de ingresso era apenas uma ferramenta de pressão. As últimas semanas mudaram completamente a situação”, analisa Rasmus Hindrén, pesquisador da Iniciativa de Segurança Transatlântica, vinculada ao think tank americano Atlantic Council.
A aliança ocidental foi fundada em 1949, com doze membros — dez países europeus mais Canadá e Estados Unidos, seu maior patrocinador, para garantir proteção militar contra a União Soviética. A Europa Oriental, de seu lado, contava com os soldados e armamentos do Pacto de Varsóvia. Desmantelada a URSS, no início dos anos 1990, o pacto se pulverizou e vários países do Leste, livres da tutela comunista, correram para a Otan — nos anos seguintes, o rol de integrantes incharia com dezoito novos membros (veja o mapa). Deu-se então a ducha de água fria: sem inimigo à vista, de que serve uma aliança militar? Até os Estados Unidos, interessados em manter esse pé na Europa, balançaram: Donald Trump declarou, em alto e bom som, que não via sentido em continuar despejando armas e dinheiro na organização. O francês Emmanuel Macron chegou a decretar a “morte cerebral” da aliança.
A ressurreição se deu agora pela mão de Putin — a intenção da Ucrânia de aderir à Otan, cravada até na sua Constituição, foi uma das desculpas para a invasão. Empurrada pela mão pesada do presidente russo, a aliança ocidental aproximou-se da Ucrânia, a quem fornece armas e treinamento desde que a Rússia começou a despachar tropas para a fronteira, no fim do ano passado. Não sendo um país-membro, porém, a ajuda é limitada. Por um lado, isso impede uma escalada do conflito de consequências imprevisíveis. De outro, garante a superioridade bélica da Rússia.
Como era de se esperar, o governo de Moscou reagiu muito mal à possibilidade de Finlândia e Suécia entrarem para a organização. Dmitry Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, disse que, se os dois países aderirem, não se poderá mais falar de “um Báltico (o mar que banha o Norte da Europa) livre de armas nucleares”. “A magnitude do conflito atual já tem, e pode ter ainda mais, potencial para aprofundar as atitudes anti-Ocidente na Rússia”, ressalta Stephen Whitefield, professor do departamento de política da Universidade de Oxford. Para Putin, desancar a Otan é bandeira que une a população a seu favor. Para os Estados Unidos, reforçar a aliança é no momento o para-raios mais eficiente contra a Rússia. Washington de um lado, Moscou de outro — quem sente aí o cheiro mofado da Guerra Fria tem boa dose de razão.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786