Restaurantes ampliam cartas de saquê e apostam em combinações inusitadas
Com maior diversidade de rótulos disponíveis no mercado brasileiro, casas combinam a bebida com diferentes origens de pratos
Era quase clandestino. Por muito tempo, o consumo de saquê no Brasil era restrito a cantos mal iluminados das prateleiras de bares em restaurantes japoneses. Os rótulos, em alfabeto oriental, apenas de vez em quando eram adequadamente oferecidos como harmonização para os preparos de atum, salmão e peixe branco — salvo as louváveis exceções dos endereços refinados. Em alguns casos (e para muitos como heresia) havia quem oferecesse a bebida como alternativa para a cachaça ou a vodca na caipirinha. Há, agora, um interessante movimento, iluminado como o sol nascente: a descoberta da riqueza de opções da milenar bebida à base de arroz, e como ela pode ser muito versátil para acompanhar todo tipo de comida — com variedade maior até que os vinhos.
A estatística ajuda a desenhar o fenômeno: houve, de 2019 para 2023, crescimento de 33% no volume de importações de saquê pelo Brasil, segundo levantamento da Japan Sake Association. Os 247 000 litros saltaram para 328 000 litros. O Brasil representa 78% de todas as vendas para a América Latina em volume, e 64,7% em valor. É o 17º principal mercado de exportações do Japão, e vem aumentando sua participação.
Parte dessa mudança é explicada, naturalmente, pela expansão do número de restaurantes orientais — embora, destaque-se, o clássico fermentado comece a despontar também em menus de outras famílias gastronômicas. A atração pela comida do Japão não para de crescer. Em 2013, 56% do público de São Paulo dizia frequentar esses espaços com regularidade. Em 2023, o número passou para 68%. Mais do que isso, alguns dos estabelecimentos mais premiados do país são dedicados à cozinha nipônica. Dos 21 endereços com estrelas Michelin, em São Paulo e no Rio de Janeiro, dez são especializados em sushi. São lugares que oferecem cartas de saquês (além de vinhos) de cuidadosa elaboração. Há ainda um aumento na quantidade de marcas à disposição. Até 2020, cerca de 60% do mercado do líquido de cor clara era dividido entre apenas dois únicos produtores. Hoje são mais de 100, de acordo com estudo da importadora Mega Sake, atalho para harmonização mais amplas com diversas modalidades de pratos. Não por acaso, dado o leque de perfis aromáticos e de sabores distintos, há muito mais coquetéis em bares badalados que já incluem o saquê.
Há fascínio cada vez maior pelo casamento do saquê com pratos picantes, o que soa como anátema na parceria com o vinho. O restaurante tailandês Ping Yang, de São Paulo, tem incrementado a iniciativa de mistura. “Rótulos untuosos, com corpo mais robusto, diminuem a picância, realçam as notas adocicadas e dão uma sensação aveludada e suculenta”, diz Pedro Ferreira, chef de sala do Ping Yang e responsável pela carta de saquês. Assim como acontece com o vinho, é preciso conhecer alguns termos (leia no quadro), mas à medida que o consumidor mergulha nesse universo passa a descobrir as características de cada variedade de arroz, os efeitos do polimento do grão e quanto o tipo de água usada afeta o corpo da bebida. É aventura de paladar que merece ser percorrida.
O cenário, apesar dos inegáveis avanços, no entanto, ainda é desafiador. Há uma percepção de que o saquê é uma bebida muito alcoólica, confundida com um destilado justamente pelo uso na preparação de caipirinha em bares. Muitas vezes, por não ser transportado em cadeia refrigerada, ele perde algumas de suas características sensoriais e o álcool se destaca, o que afeta sua apreciação. Ele também é visto como uma alternativa de nicho, atrelada a restaurantes japoneses (o que não deixa de ser verdade, passageira, por enquanto). E o preço é elevado (eis aí uma verdade contundente). Como o Brasil é distante do Japão, os custos com frete e impostos se refletem no preço final do produto para o consumidor. Bons títulos são encontrados na faixa a partir de 200 reais, e quase sempre em São Paulo, que bebe 45% do mercado.
Uma das maneiras de reverter a situação, e ampliar o alcance, é a realização de feiras e eventos, como a segunda edição da Sake Fair, realizada entre os dias 4 e 5 de outubro, em São Paulo. Além dos produtores nacionais e dos importadores já atuantes, participam produtores japoneses ainda sem representação no Brasil, que buscam formas de abrir as portas. Outro evento relevante na agenda etílica de São Paulo é o Festival do Sake, programado para acontecer em novembro, com palestras e eventos gratuitos, além de sessões de degustação — fundamentais para atrair mais consumidores. De Tetsu Kariya, celebrado autor de mangás: “O saquê e os vinhos são as únicas bebidas que atingiram o patamar de obras de arte”.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913