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Como os livros de receitas passaram a resgatar memórias do paladar

Eles deixaram de ser apenas práticos apanhados de dicas e ingredientes

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 20 jul 2024, 08h00
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  • Foi-se o tempo em que os livros de culinária eram apenas volumosos compilados de receitas, feitos para ajudar quem se aventurava pela cozinha. Publicações como Dona Benta Comer Bem, editada pela primeira vez em 1940 e desde então reimpressa e ampliada de forma consistente, um clássico querido, tiveram — e ainda têm — papel fundamental. Não à toa, estão presentes em muitos lares brasileiros. Brota, agora, um fascinante movimento: a profusão de livros com o passo a passo e ingredientes, mas uma intenção paralela admirável, a de preservar a história de diferentes tradições regionais. Ajudam a ampliar repertórios e apresentam gastronomias locais ou de parcelas marginalizadas da população para público mais amplo. Além de oferecer pratos saborosos, o que é fundamental, são produções culturais de enorme valor, resgate de memórias do paladar.

    É tendência internacional. Um dos principais exemplos recentes de livros dessa linha arqueológica vem do Oriente Médio. Na fronteira entre Síria e Jordânia, o acampamento de refugiados de Zaatari, o maior do mundo, foi criado em 2012 para receber a população que fugia do conflito civil que assolava a Síria. Desde então, o campo cresceu e agora, doze anos depois, abriga mais de 80 000 pessoas. Para os refugiados, preparar os pratos que comiam em casa é uma forma de manter vivas as lembranças domésticas. Durante oito anos, a etnógrafa Karen E. Fisher trabalhou na região pesquisando como viviam os moradores daquele canto e coletou dezenas de receitas, reunidas em um livro lançado neste ano no mercado americano. Virou best-seller. Não é o único, claro. No fim de maio, a autora Karla Tatiana Vasquez publicou The SalviSoul Cookbook, o primeiro dos Estados Unidos dedicado apenas à cozinha de El Salvador. Como filha de imigrantes, Vasquez trabalhou desde 2015 para coletar as dicas de outras mulheres que deixaram seu país em busca de melhores condições de vida nos Estados Unidos. Graças a seu esforço, a herança gastronômica foi transformada em manifesto de diversidade.

    PRESERVAÇÃO - O campo de refugiados Zaatari, na Jordânia: para os sírios que fugiram de seu país, a comida é uma forma de manter viva uma tradição
    PRESERVAÇÃO - O campo de refugiados Zaatari, na Jordânia: para os sírios que fugiram de seu país, a comida é uma forma de manter viva uma tradição (Khalil Mazraawi/AFP)

    O Brasil, com sua vasta extensão, merece especial espaço à mesa, dada a variedade de grupos, de aprendizados de geração para geração. Louva-­se a comida de Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul, por exemplo. Outras, como a do Pará ou de Roraima, um tantinho à sombra, pedem passagem. “A culinária dos estados do Norte deveria ser mais divulgada”, diz Flávio Ferraz, renomado psicanalista e que, já há alguns anos, dedica-se a pesquisar o forno e fogão que o Brasil manteve em fogo brando. Ferraz — mineiro de nascimento radicado em São Paulo — escreveu uma série de sete volumes sobre os sabores regionais pela Editora Metalivros. O mais recente é dedicado ao Pará. Um outro, sobre o Amazonas, está no prelo. “Embora existam vários ingredientes em comum nessas regiões, há muitas diferenças de produtos, de geografia, de métodos de preparo”, diz ele. De forma geral, as técnicas ficam restritas à tradição oral. Com os guias, o alcance cresce. “Mais do que divulgar, os livros de receitas oficializam um conhecimento”, diz Ferraz.

    É fascinante. Em tempo de vale-tudo das redes sociais, em que doses de bobagens sobram, até mesmo as receitas sofrem, e é difícil separar o joio do trigo. Os livros funcionam como fontes confiáveis de sabedoria. Existem, inclusive, premiações específicas voltadas para esse tipo de publicação. A mais reputada é o James Beard Award, criado em homenagem ao escritor, chef e personalidade da televisão dos EUA, James Beard (1903-1985). Além de reconhecer os cozinheiros destacados, há categorias voltadas para volumes de cozinha americana e internacional. Uma seção é dedicada à pesquisa histórica. Em 2023, o vencedor na categoria, Slaves for Peanuts, abordou a relação dos escravizados e o plantio de amendoim.

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    PALADAR NORTISTA - O Mercado Ver-o-Peso, em Belém, no Pará: culinária local esmiuçada em obra do pesquisador Flávio Ferraz
    PALADAR NORTISTA – O Mercado Ver-o-Peso, em Belém, no Pará: culinária local esmiuçada em obra do pesquisador Flávio Ferraz (Oswaldo Forte/Fotoarena/.)

    Mas além da pesquisa e de referências do passado, uma boa publicação de culinária deve ter excelentes receitas, testadas à exaustão e bem escritas. Sem isso, corre o risco de morrer nas prateleiras. Com boas sugestões, será usado, anotado, sujo pelos ingredientes de preparo. “Um livro de receitas cheio de emendas e observações é insubstituível”, diz Ferraz. As lindas histórias familiares agradecem.

    Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902

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