Com o zelo de um ourives, o chef André Daguin preparava o menu quase monotemático nas profundezas de um restaurante em Auch, capital da Gasconha, no sudoeste da França, lugar em que sempre houve mais patos do que pessoas. Era assim, rotineiro e silencioso, o cotidiano do Hôtel de France, até que uma reportagem de meia página publicada no The New York Times em junho de 1971 provocou uma saborosa revolução. O respeitado crítico gastronômico Bob Daley informou aos leitores ter feito “a refeição mais extraordinária” de sua vida, “um bife grosso”, a “melhor carne que já havia provado, sem nervos, sangrando à perfeição”. Ele descobrira uma especialidade criada por Daguin, o filé de peito de pato grelhado, que ganhou o mundo na expressão do idioma de Molière, magret de canard. A iguaria existia desde 1959, o Michelin já concedera ao endereço duas estrelas, e ainda assim era uma joia escondida.
O truque: servir o peito de pato grelhado, com a gordura penetrando na carne, quase cru por dentro, rosado, e a pele crocante — acrescido depois de molho apimentado. Antes, cozinhava-se o peito de pato lentamente, em fogo baixo — ao modo confit, em francês. No título da reportagem que abriu a Daguin a porta da fama, o jornalista americano definiu tudo: “Uma carne enigmática: peito grelhado”. Em 2011, uma pesquisa de opinião pública pôs o magret de canard no topo das preferências do paladar dos franceses, com 21% das citações — à frente das moules-frites (os mexilhões com fritas que são especialidade belga), do cuscuz marroquino e da blanquette de veau, o cozidão de vitela. Daguin preparava também espetaculares porções de foie gras no espeto e vieiras grelhadas — outras maravilhas daquela região banhada pelo Atlântico e emoldurada pelos Pirineus. Mas nada que fosse tão influente quanto o magret, elaborado com uma regra permanente, que servia de mantra ao mestre-cuca: “Cozinhar é simples. É pôr o máximo de sabor no mínimo de volume”, divisa inescapável da chamada nouvelle cuisine. Daguin morreu na terça-feira 3, aos 84 anos, em Auch, de câncer no pâncreas.
Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664