LUSAIL – O mundo amanhecera neste domingo ansioso pelo duelo entre Lionel Messi e Kylian Mbappé. O vencedor seria alçado ao posto de rei do futebol, levando Argentina ou França ao tricampeonato mundial. Ambos corriam para a artilharia da Copa. Antes da coroação, contudo, haveria a mais espetacular final de Copa de toda a história – a Argentina passeava, como num amistoso sem graça, com um gol de Messi, de pênalti, e um golaço de Di Maria. Era assim até os 34 minutos do segundo tempo, quando Mbappé diminuiu, também por meio de penalidade. Um minuto depois ele empataria a partida em 2 a 2 a caminho da prorrogação. E o que era para ser um jogo de futebol virou algo indizível, para corações fortes, uma aventura épica, uma beleza. Messi fez o 3 a 2 aos dez minutos do segundo tempo da prorrogação, com um capricho que nem o mais premiado dos roteiristas seria capaz de imaginar: a bola entrou, mas não estufou a rede, tirada de dentro do gol pelo zagueiro francês. Em seguida, Mbappé empatou, 3 a 3, para levar o jogo para a disputa da marca de cal.
Ao fim de 120 minutos e das penalidades, contudo, o jogo precisaria terminar. Afinal, um dos dois, Messi ou Mbappé, teria de levar o cetro – embora ambos merecessem sair de mãos dadas para a posteridade e a humanidade sairia vencendo se a partida não terminasse nunca mais. A Copa não queria terminar. Mas acabou, infelizmente e não custa reafirmar: com uma partida de futebol que parece ter sido desenhada por Michelangelo ou escrita por Shakespeare.
Findo o drama, se é que um dia ele findará, agora é possível dizer: o rei é Messi. Depois da vitória contra a França e o tricampeonato mundial da Argentina, o genial canhoto chegou ao olimpo. O que se viu na tarde de Lusail, no Catar, foi um daqueles momentos inesquecíveis, agora multiplicado pelas redes sociais. Nem tanto pelos dois gols, nem mesmo pelo passe que deflagrou o segundo tento albiceleste ou a frieza na disputa de pênaltis. A moldura é maior e mais bonita.
Senão, vejamos. Houve a tarde sueca em que Pelé chorou nos ombros de Gilmar, em 1958. Houve a correria em torno do rei no Estádio Azteca, na Cidade do México, em 1970 – os torcedores ávidos por conseguir alguma lembrança do maior de todos na sua despedida em Copas, quem sabe a camisa amarela, quiçá o calção azul. Houve a infame cabeçada de Zidane em Materazzi, no Estádio Olímpico de Munique, em 2006. Os instantes épicos são poucos. E haverá para sempre a ovação a Lionel Messi depois de erguer a taça do mundo. Foi um instante mágico, a consagração de um gênio, aos 35 anos. Fica decretado o seguinte: depois de Pelé, um pouquinho abaixo apenas, vem Messi.
Não foi fácil, para ele, chegar lá – era preciso antes vencer uma sombra incômoda, a de Diego Armando Maradona. Na Argentina, o tango dramático do cotidiano impusera uma contradição: um ou outro, tão diferentes na origem, na vida, na postura. Maradona era o menino pobre do chão de terra de um bairro pobre. Messi é o garoto de Rosário, que cedo mudou para Barcelona. Ele sabia que para poder bater na porta do panteão precisaria não apenas chegar ao título mundial, mas avançar em toada à Maradona, ainda que fosse uma contradição em termos para uma personalidade tão retraída.
Mas Messi deu um jeito, porque sempre dá. Na área de entrevistas para a imprensa depois da vitória por pênaltis contra a Holanda, nas quartas de final, Messi disparou uma bronca contra o centroavante holandês Wout Weghorst, que empatara a partida, levando-a para a prorrogação. A diatribe, um pouco deslocada, quase risível, virou meme (embora tenha sido apenas um mal entendido, porque o europeu se aproximara apenas para lhe pedir a camisa): “Que mirás, bobo. Andá p’allá”. Maradona teria dito isso, mas de um modo mais mercurial, é bom ressaltar. De qualquer modo, a frase serviu de senha para o nascimento de um novo Messi, em fim de carreira, ainda que soasse estranha ao jeito alheio do craque do PSG. Era Messi saindo de seu casulo, na antessala da consagração. Se a Argentina tivesse ficado com o vice-campeonato, os memes se multiplicariam como piada, e só. A boutade sumiria com o tempo. Mas não, virou quase um símbolo da conquista – tal qual a taça que em 2014 ele vira a pouca distância, com olhar melancólico, e agora beijou como a um de seus três filhos.
É ilusão imaginar que a discussão – Messi ou Maradona – tenha se encerrado. Não. No Lusail, logo antes do apito inicial, o telão exibiu lances de campeões mundiais que morreram desde 2018, em bonita homenagem – o lance do gol de Maradona contra a Inglaterra em 1986, o gol do século, recebeu urros de êxtase dos argentinos, em maciça maioria. Mas o que o atual bailarino de dorso comprido e pernas curtas fez no Catar, mais até do que Maradona no México, talvez só possa ser comparado ao desempenho de Pelé na Copa de 1970. Nem tanto pelos 6 gols marcados, três dos quais de pênalti, e sim pela trajetória emocionante, que começou com uma derrota por 2 a 1 para a Arábia Saudita. Mas afinal, o que fez Messi para comover o mundo, ao menos quem gosta de esporte, para além do inesquecível drible na beirada direita do campo em cima do croata Gvardiol, com o luxo de um cruzamento de direita –a perna cega – para o gol de Julián Álvarez? O que mesmo ele fez? Caminhou no deserto, e nem sempre com a bola
As passadas curtas e o ritmo indolente soavam displicentes, mas não. É coisa de um jogador capaz de ver tudo antes dos outros. Não corre porque não precisa correr. Não corre porque, para lá dos 30 anos, sabe já não ter o fôlego de antes. E não corre porque faz de um centímetro quadrado de grama um latifúndio. No Catar, na trilha da glória eterna, ele pôs em prática uma bonita frase do naturalista e poeta americano Henry David Thoreau (1817-1862): “Ande como um camelo, ao que sabemos, o único animal capaz de ruminar em marcha”. Foi linda a marcha de Messi no Catar – o fim de carreira em Copas, a coroação de um caminhar inigualável, uma piscadela à beleza da maturidade, o avesso da eterna e tola meninice de Neymar.
E o mais legal, entre novembro e dezembro, foi ter seguido Messi calma e docemente – “que mirás, bobo”, foi apenas um acidente – ao som do canto mais ouvido em todo o mundo nos últimos 30 dias. A letra da canção Muchachos, adesiva, resume o que aconteceu, e nem é preciso traduzi-la, embora seja fundamental ouvi-la: “ En Argentina nací/ Tierra del Diego y Lionel/ De los pibes de Malvinas/Que jamás olvidaré/ No te lo puedo explicar/ Porque no vas a entender/ Las finales que perdimos/Cuantos años la lloré/ Pero eso se terminó/ Porque en el Maracaná/ La final con los brazucas/ La volvió a ganar papá/ Muchachos/ Ahora nos volvimos a ilusionar/Quiero ganar la terceira/Quiero ser campeón mundial/Y al Diego/Desde el cielo lo podemos ver/Con Don Diego y La Tota/ Alentándolo a Lionel/Muchachos/Ahora nos volvimos a ilusionar/Quiero ganar la terceira/Quiero ser campeón mundial/ Y al Diego/ Desde el cielo lo podemos ver/Con Don Diego y La Tota/ Alentándolo a Lionel, y ser campeones otra vez, y ser campeones otra vez”
A canção tem tudo, até culminar no tricampeonato, que parecia ilusão e não é mais. Diego e Lionel. A Guerra das Malvinas. A derrotas nas finais de 1990 e 2014. A vitória na Copa América em pleno Maracanã. Tota, a mãe de Maradona. Os muchamos. Só não tem Angél Di Maria, o espetacular ponta com pinta de cantor de tango dos anos 1930, autor do segundo gol.
Messi chegou lá. Mas cabe uma lembrança à grandeza de Mbappé, que foi o artilheiro da Copa com 8 gols. Em muitos aspectos, o francês ultrapassou Pelé quando tinha 24 anos. Mbappé tem 12 gols em duas Copas. Pelé tinha 7. Ele será o futuro rei do futebol – receberá o posto de Lionel Messi. Os dois fizeram uma final memorável.
O mundo do futebol reconhece e agradece a Copa de Messi.