Pouco antes de a televisão se popularizar como fenômeno de massa, o escritor americano Joseph Campbell (1904-1987) escreveu o clássico O Herói de Mil Faces, de 1949. Ao analisar a técnica empregada na construção de lendas, mitos e fábulas antigas, Campbell desenhou um modelo narrativo, cuja aventura dos personagens passava invariavelmente por toda sorte de percalços até o momento da redenção. Consagrada na ficção, a fórmula é amplamente observada na vida real — e especialmente no meio esportivo. Não à toa, cada vez mais as plataformas de streaming investem nesse segmento com a produção de séries e documentários sobre atletas em atividade ou aposentados, famosos ou nem tanto, heróis ou vilões.
Basta um breve passeio pelas telas de Netflix, Prime Video, HBO Max, Disney+ ou Globoplay para perceber como o cardápio esportivo anda cada vez mais variado. Seja de futebol, basquete, tênis ou mesmo modalidades menos tradicionais, o fundamental é haver uma boa história a ser contada. Michael Jordan e a pandemia tiveram papel especial no desabrochar da tendência. A série The Last Dance, sobre a temporada de 1998 do Chicago Bulls, estreou em abril de 2020, durante o período mais rígido do lockdown, quando todos buscavam um refúgio para o tédio. A obra premiada com um Emmy de melhor produção não ficcional daquele ano contou com mais de 100 entrevistas — até Barack Obama quis falar sobre sua paixão por MJ e pelos Bulls — e foi um ponto de virada na indústria.
![SERIE O CASO FIGO 06.jpg O CASO FIGO: A TRANSFERÊNCIA QUE MUDOU O FUTEBOL - O documentário, que estreou em agosto, mostra como se deu a venda de Luís Figo, ídolo português do Barcelona, ao rival Real Madrid, no ano 2000](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/09/SERIE-O-CASO-FIGO-06.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Outro caso emblemático é o da série Drive to Survive, que mostra os bastidores da Fórmula 1 e ajudou a rejuvenescer o grupo de fãs de corridas, com um boom especial entre a audiência feminina. “Esse tipo de produto já existia, mas dentro de uma programação de TV linear, com hora marcada para assistir, e portanto não retinha tanta audiência”, diz Bruno Maia, CEO da startup Feel The Match, especializada na criação de conteúdo no segmento esportivo. “Com o avanço do streaming e de um comportamento cada vez mais customizado do consumo, em que a pessoa escolhe o que quer e quando quer ver, abriu-se um universo de opções.” Nos moldes de Last Dance, Maia produziu a série Romário, o Cara, prevista para estrear em 2023, sobre a carreira do marrento craque do tetra em 1994. Ele garante: o Baixinho não vetou nenhum assunto ou fonte e até indicou pessoas que poderiam falar mal dele para enriquecer a trama.
![SERIE DRIVE TO SURVIVE 02.jpg F1: DRIVE TO SURVIVE (DIRIGIR PARA VIVER) - O sucesso da série ajudou a Fórmula 1 a aumentar em 77% o interesse de pessoas entre 17 e 35 anos sobre a modalidade, de acordo com a Nielsen -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/09/SERIE-DRIVE-TO-SURVIVE-02.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Uma das chaves do êxito do formato é explorar não apenas o mito dos vitoriosos, mas o drama dos derrotados. Há uma série dedicada aos perdedores, chamada Losers, outra sobre o calvário do tenista americano Mardy Fish, além de saborosos bastidores de vestiários em crise nas séries da saga All or Nothing, que passou por clubes como Manchester City e Juventus. Os algoritmos de recomendação, cada vez mais eficientes, também ajudam a consolidar o gênero.
![SERIE THE LAST DANCE 02.jpeg THE LAST DANCE (ARREMESSO FINAL) - Um divisor de águas para a indústria, a série sobre Michael Jordan e o Chicago Bulls foi vista por 30 milhões de pessoas meses após seu lançamento -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2022/09/SERIE-THE-LAST-DANCE-02.jpeg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
A cineasta Susanna Lira se diz surpresa com o fascínio que o esporte provoca depois de ter produzido séries sobre os ex-atacantes Walter Casagrande e Adriano. Segundo ela, convencer os personagens a expor suas fragilidades requer tato. “Não ser chapa-branca é ser honesto, pois não tem como contar histórias como essas sem tocar em aspectos sensíveis”, diz. Há casos em que o biografado visa, sobretudo, a eternizar seus feitos e expô-los a novas gerações. Um bom exemplo é O Caso Figo, em que diversos entrevistados perseguem o papel de protagonista. Mas não se trata apenas de mera vaidade. “Vejo neles um desejo de fazer justiça com a própria história e deixar um legado”, pontua a cineasta. Para quem curte esportes e jornadas do herói, opções não faltam.
Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807